Em agosto deste ano, os Estados Unidos baniram o uso do inseticida clorpirifós depois que estudos apontaram problemas causados por este agrotóxico à saúde humana, entre eles a queda do QI de crianças. Em menos de um ano, o mesmo produto já havia sido banido pela União Europeia e Argentina.
No Brasil, contudo, o produto segue entre os cinco mais utilizados, com mais de 10 mil toneladas vendidas em 2019, segundo dados do Ibama. O clorpirifós é um dos campeões, ainda, na detecção de quantidades irregulares nos testes feitos em supermercados e na água que abastece centenas de municípios.
Apesar das evidências internacionais, o brasileiro deve seguir consumindo esse inseticida por muitos anos. Até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não iniciou os estudos de reavaliação do registro do Clorpirifós. Esse é o principal mecanismo que pode banir um agrotóxico no país. Após iniciado, o processo pode perdurar por mais de uma década. A reavaliação do Glifosato, por exemplo, começou em 2008 e só foi concluída em 2020.
Foto: Divulgação/Villa Verde Agro
Perigo para fetos, crianças e trabalhadores rurais
Poucos brasileiros já devem ter ouvido falar do inseticida clorpirifós, mas é bem possível que uma grande parcela da população já tenha consumido algum alimento que contenha este agrotóxico. O produto é usado em diversas plantações, como algodão, batata, café, cevada, citros, feijão, maçã, milho, pastagens, soja, sorgo e trigo. Faz parte da classe dos organofosforados, um grupo químico que causa envenenamento por colapso do sistema nervoso dos insetos.
Os pontos principais para a proibição nos Estados Unidos foram estudos que identificaram que o clorpirifós está associado a potenciais efeitos neurológicos em crianças.
Um estudo de 2012 da Universidade de Columbia, analisou um grupo de 40 crianças de até 11 anos que foram expostas ao clorpirifós durante a gravidez. Quanto maior foi o nível de exposição, menor era o tamanho do córtex cerebral delas. O estudo identificou que quando essas crianças chegaram aos três anos de idade, elas passaram a apresentar uma série de deficiências motoras e cognitivas, sendo a mais comum o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Ao chegarem aos sete anos, constatou-se a redução do QI.
A toxicologista e pesquisadora da Fiocruz Karen Friedrich explica que os efeitos tóxicos do clorpirifós vêm sendo estudados há décadas, e os alertas sobre os riscos não são mais uma novidade. Os organofosforados têm um efeito bastante conhecido sobre o sistema nervoso, levando tanto a efeitos agudos, sentindo logo após a utilização e que causam consequências aos trabalhadores rurais, quanto consequências que aparecem a longo prazo, diz. Também já temos estudos sobre os danos do clorpirifós sobre o sistema hormonal, e de problemas no desenvolvimento de crianças que são expostas a essa substância quando ainda estão no útero ou no começo da vida, completa.
No Brasil, existem pelo menos 26 marcas comerciais de agrotóxicos formulados a partir do Clorpirifós. De acordo com a plataforma Agrofit, do Ministério da Agricultura, empresas como a Ouro Fino, FMC, Tradecorp, Nortox, Rainbow, Adama, Dow Agrosciences e Albaugh têm registros para vender o produto no país.
Segundo o administrador da agência ambiental americana (Envirnmental Protection Agency), Michael Regan, a decisão de banir o clorpirifós segue a ciência e colocará a saúde e a segurança em primeiro lugar. Hoje a EPA está dando um passo atrasado para proteger a saúde pública. Acabar com o uso de clorpirifós nos alimentos ajudará a garantir que as crianças, os trabalhadores agrícolas e todas as pessoas fiquem protegidos das consequências potencialmente perigosas deste pesticida, afirmou em um comunicado à imprensa.
A primeira empresa a registrar o Clorpirifós foi a Dow Chemical Company em 1965. Após uma série de fusões, a Dow chama-se hoje Corteva Agriscience. Em fevereiro de 2020, a empresa decidiu que retiraria inseticidas formulados à base de Clorpirifós do mercado estadunidense, alegando baixa comercialização das marcas. Mesmo assim, a companhia defendeu a segurança do produto. Embora a Corteva Agriscience não produza mais o clorpirifós, a empresa defende a segurança do produto e seu valor para os produtores, disse em nota à Agência Pública e Repórter Brasil.
Sobre a proibição definida pela agência ambiental, a empresa diz que a ação remove uma ferramenta importante para os agricultores. Enquanto a Corteva continua a revisar o pedido, entendemos que a justificativa usada pela Agência é inconsistente com o banco de dados completo e robusto de mais de 4 mil estudos e relatórios que examinaram o produto em termos de saúde, segurança e meio ambiente, pontuou em nota. A Corteva também afirmou que não vende mais produtos à base de clorpirifós no Brasil.
Anvisa não vai priorizar reavaliação
Em nota, a Anvisa respondeu que as proibições em outros países são critérios considerados na construção da lista de prioridades para a reavaliação no Brasil. Mas que, atualmente, com as evidências técnicas disponíveis não se faz pertinente uma nova priorização do clorpirifós na lista de reavaliação. A agência afirma também que a reavaliação do produto, que ocupa a quarta posição na lista de prioridades, já está sendo iniciada, de forma que o clorpirifós deve ser submetido em breve ao processo. Mas não há data prevista.
O pesquisador da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luiz Cláudio Meirelles, que foi gerente-geral da Anvisa, conta que quando trabalhou na agência, em 2008, alguns organofosforados foram reavaliados. O grupo dos organofosforados, em geral, apresentam alta toxicidade. São bastante neurotóxicos, além de terem efeitos crônicos a longo prazo, por isso, durante a primeira década dos anos 2000, se discutiu bastante o banimento dessas substâncias, diz.
Ele recorda que, há vinte anos, o clorpirifós já estava na fila para ser reavaliado, pois naquela época já se tinha evidências semelhantes às que embasaram as decisões norte-americanas de hoje. A agência reguladora dos Estados Unidos começou a questionar o clorpirifós em 2006, em uma decisão que se arrastou até algumas semanas atrás, completa Luiz Cláudio.
Os agrotóxicos organofosforados são muito utilizados no Brasil e no mundo, e por isso recebem apoio da indústria para mantê-los no mercado. A ideia é que o Brasil fosse mais ágil nas reavaliações, mas é um debate bastante difícil com o setor regulado. Na época do metamidofós enfrentamos bastante pressão, foi um banimento muito discutido, com recomendações das empresas para que o produto fosse mantido no mercado, algo semelhante ao que ocorreu recentemente com o paraquate. O metamidofós foi banido em 2011, e a partir daí aumentou o uso do clorpirifós, que foi usado para substitui-lo, conta Luiz.
Sobre a demora no processo de reavaliação, Luiz Cláudio opina que o Brasil poderia adotar proibições de agências reguladoras parceiras. No começo de 2020, o Ministério da Agricultura tentou uma medida que percorria a lógica inversa: publicou uma portaria que autorizava a aprovação tácita de agrotóxicos quando um produto não fosse aprovado em até 60 dias, ele receberia a liberação automática caso já fosse liberado por reconhecidas agências reguladoras internacionais. A portaria foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.
Eles apoiam a ideia para liberações, mas não aprovam para banimentos, pois sabem que grande parte dos agrotóxicos mais vendidos no Brasil já são proibidos internacionalmente. E a saúde do povo do brasileiro não é superior a do europeu ou do norte-americano, ao contrário, nosso país vive uma vulnerabilidade social muito maior que esses países, explica.
Grande persistência no meio ambiente
Além de causar problemas de saúde, o clorpirifós é uma substância que demora décadas para ser degradada no meio ambiente. Por isso, o produto foi adicionado à lista da Rede de Ação contra Agrotóxicos (PAN, na sigla em inglês) com a classificação de Altamente Perigoso (highly hazardous pesticides, na sigla em inglês, conhecidos como HHPs).
Exames laboratoriais feitos pelo Governo Federal comprovaram a persistência da substância. O clorpirifós foi um dos destaques negativos da última edição do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) feito pela Anvisa. A agência fez análises laboratoriais em 4.616 amostras de 14 alimentos de origem vegetal vendidos em supermercados e feiras do Brasil.
Embora o clorpirifós tenha sido o 13º agrotóxico mais identificado como um todo, ele foi o segundo que mais apareceu em situação irregular. A Anvisa identificou resíduos do produto em 198 amostras de alimentos para os quais seu uso nunca foi autorizado. Entre eles, o inseticida apareceu em goiabas, laranjas, pimentões, tomates e outros.
A pesquisadora da Fiocruz, Karen Friedrich explica que uma das principais explicações para isso é a questão econômica. O clorpirifós é uma molécula mais antiga, que já perdeu a patente e é mais barata. Geralmente esses produtos acabam sendo utilizados em culturas que não são autorizadas por questões econômicas. Isso demanda uma estrutura de estado mais fortalecida e que possa fiscalizar e dar orientações técnicas do uso de forma geral, diz.
A Anvisa informou à reportagem que a partir do resultado das análises do clorpirifós na última edição do programa que testa os alimentos, a agência realizou a avaliação do risco dietético nos alimentos infectados e não observou risco crônico ou agudo para a saúde dos consumidores. Todavia, ressalta-se que a partir dos resultados da próxima reavaliação toxicológica, o cenário atual do ingrediente em tela poderá ser alterado, disse em nota.
E não é apenas em alimentos que o clorpirifós foi detectado, ele apareceu também no mapa da água. Trata-se de uma investigação conjunta da Repórter Brasil, Agência Pública e da organização suíça Public Eye que obteve dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) do Ministério da Saúde e descobriu uma mistura de diferentes agrotóxicos na água que abastece um em cada quatro cidades do Brasil entre 2014 e 2017.
O clorpirifós foi identificado em 91% das amostras analisadas 24.904 detecções de 27.493 testes feitos em todo o país. Trata-se do oitavo agrotóxico mais identificado na água que abastece os municípios brasileiros.
Foto: Steve Buissinne/Pixabay
Karen da Fiocruz teme que as proibições no exterior façam o Brasil aumentar ainda mais o uso do clorpirifós, como acontece com diversas outras substâncias que são banidas na Europa, e acabam sendo descarregadas no Brasil por multinacionais. Além disso, assim como ocorreu com o Paraquate, os agricultores podem criar estoques do produto para continuar usando após a proibição.
A pesquisadora critica também a falta de transparência e dados mais específicos sobre a comercialização de agrotóxicos como o clorpirifós no Brasil, trabalho que atualmente é realizado pelo Ibama. Seria importante termos dados de comercialização dos agrotóxicos por município e por cultura. Com isso, o Ministério Público poderia fazer ações de vigilância dessas formulações. A comunidade científica poderia realizar pesquisas independentes para identificar, por exemplo, a quantidade do uso de um agrotóxico como o clorpirifós em uma região que apresenta um alto número de casos de doenças que a literatura científica já relacionou com essa substância, explica.
FONTE: Pedro Grigori - Agência Pública/Repórter Brasil