Como disse outro dia Luiz Inácio Lula da Silva, soberania é comida no prato, emprego e renda, e cuidado com o meio ambiente. A agenda privatista do governo, que vende seus ativos estratégicos para o setor privado e gasta os recursos obtidos de forma irresponsável, não responde às necessidades da população e à soberania do País.
O Estado, enfraquecido pela agenda do sucateamento e desmantelamento, torna-se cada vez mais um coadjuvante do mercado, incapaz de liderar a nação e colocá-la novamente no trilho do desenvolvimento, com a repartição dos seus frutos para toda sociedade. Não há quem não perceba o empobrecimento do País ao andar nas ruas das cidades e no campo. Os dados do Índice do Desenvolvimento Humano (IDH) mostram uma queda de nove posições desde 2014, deixando o Brasil na 84ª posição, apesar da pequena melhora de 1,2% no desempenho. O problema é que outros países estão melhorando a um ritmo bem maior, o México promoveu uma melhora de 2,4% no IDH, passando para posição 74.
Os dados não escondem a realidade. Esta semana, a Rede PENSSAN divulgou o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. Os números são alarmantes, e revelam que “o povo brasileiro vem empobrecendo progressivamente e enfrentando as consequências da precarização da vida, sem o suporte adequado e efetivo de ações do Estado”. Os domicílios brasileiros que enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave passaram de 20,5% do total para 30,7%, representando cerca de 65,6 milhões de pessoas.
A pesquisa realizada a partir de entrevistas domiciliares, seguindo uma metodologia similar a do IBGE e compatível com os dados da PNADC do instituto do governo, mostra que em 15,5% dos domicílios as pessoas residentes passam por insegurança alimentar grave. Trocando em miúdos, passam fome. Enquanto 15,2% dos domicílios estão sujeitos à insegurança alimentar moderada, não há escassez de alimento a ponto de as pessoas passarem fome, mas restrição no seu consumo. São casas onde se come menos do que devia, e consome muitas vezes um alimento “ultraprocessado”, mais barato e de pior qualidade, em vez de consumir alimentos orgânicos e agroecológicos. Esta piora na qualidade da alimentação é sentida também pelas famílias em domicílios com insegurança alimentar leve, presente em 28% dos lares brasileiros.
Entre o período de pouco mais de um ano transcorrido entre a pesquisa realizada em dezembro de 2020 e a atual, realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022, o número domicílios com pessoas em situação de insegurança alimentar grave aumentou em aproximadamente 14 milhões de pessoas, ao mesmo tempo em que cerca de 8 milhões a mais de pessoas passaram a sofrer insegurança alimentar moderada. A situação é pior no meio rural, onde 18,6% dos lares sofrem com a insegurança alimentar grave, e sensivelmente pior no Norte e Nordeste, onde 25,7% e 21% dos domicílios sofrem com a fome, respectivamente, totalizando cerca de 17 milhões de pessoas.
Os números escancaram o sofrimento das famílias mais pobres, que respondem por praticamente 13% da população, com rendimento inferior a R$ 261 reais por mês por pessoa. Segundo Marcelo Neri, da FGV, mesmo “com a adoção do novo auxílio em escala reduzida com duração limitada a partir de abril de 2021”, cerca de 27,7 milhões de pessoas se encontravam na pobreza, um número maior do que o observado antes da pandemia da Covid-19. Os dados do IBGE sobre rendimento mostram que, em 2021, o rendimento dos 50% mais pobres ficou no pior patamar dos últimos nove anos e a desigualdade voltou a subir.
As condições do mercado de trabalho e da inflação têm contribuído para agravar o cenário, juntamente com o desmonte de políticas sociais importantes de proteção à população mais vulnerável. A introdução do novo inquérito sobre a segurança alimentar não poderia ser mais clara em seu primeiro parágrafo: “Nesse cenário de desmonte das políticas públicas, direta ou indiretamente voltadas à proteção e à promoção da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), deve-se destacar, em 2021, a extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Bolsa Família (PBF), substituídos pelos programas Alimenta Brasil e Auxílio Brasil, respectivamente, reconhecidos por analistas sobre o tema como frágeis em suas concepções e objetivos, além de limitados na abrangência populacional. Estima-se que apenas metade dos 100 milhões de pessoas antes atendidas pelo PBF e pelo Auxílio Emergencial permaneceu com acesso ao Auxílio Brasil. Ademais, sobressai, neste período da pandemia, a má gestão do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).”[1]
O Brasil sofre para criar bons empregos, empregos formais atrelados à garantia de direitos sociais básicos, apesar da promessa feita na época da reforma trabalhista. Ao invés disso, o que vemos é a proliferação de trabalho precário por detrás do discurso do empreendedorismo. As grandes empresas de serviço e aplicativo aumentando seu lucro através da precarização da mão de obra, na proporção em que “economizam” ao não pagarem os direitos trabalhistas para esses “colaboradores e colaboradoras”. Mas, hoje, sabemos que ao invés de uma relação autônoma, esses trabalhadores e trabalhadoras são, no fundo, empregados(as) sem direitos dessas empresas, sujeitos à exclusão (demissão) arbitrária, sem direitos a férias, licença maternidade, auxílio-doença, férias remuneradas, entre outros.
A taxa de desemprego de abril caiu para 10,5%, colocando-se num patamar similar ao início de 2016. O índice esconde o aumento do trabalho sem carteira assinada e a heterogeneidade regional, ainda assim são 11,4 milhões de desocupados(as). Os dados refletem a média do País, mas no Nordeste a taxa de desemprego chega a 14,9%, enquanto no Sul fica em 6,5%, evidenciando as desigualdades regionais. O trabalho sem carteira assinada responde por 41% do pessoal ocupado. Cerca de 12,5 milhões de pessoas trabalham sem carteira assinada no setor privado, e 4,3 milhões trabalham em casa de família. O Brasil ainda conta com outros 20 milhões de ocupados(as) informais que se dizem empresários(as) e trabalhadores(as) por conta própria sem CNPJ.
O aperto monetário do Banco Central para combater a inflação tende a frear qualquer retomada do emprego, e de quebra agravar a fome e a pobreza. A inflação vem corroendo o poder de compra dos brasileiros e brasileiras, que têm enfrentado dificuldades para colocar a comida na mesa, ao mesmo tempo em que os preços disparam, consumindo o orçamento familiar com itens básicos, como energia elétrica, gás de cozinha, transporte e alimento. No último levantamento feito pelo Dieese, em maio, o valor da cesta básica correspondia a 69,4% do salário-mínimo. Após comprar a cesta básica sobram apenas R$ 371 no bolso do(a) trabalhador(a), em 2015, sobrariam R$ 558, o que mostra o tamanho da perda de poder de compra dos(as) brasileiros(as).
Mas a inflação não é igual para todos(as) e sabemos que vem prejudicando principalmente as pessoas mais pobres, como tem mostrado o IPEA, outro órgão de pesquisa do governo. A inflação para classe mais baixa foi 20% maior do que para classe mais alta. O IPCA ficou em 11,73% no acumulado em 12 meses, em maio, os preços do grupo “alimentos e bebidas” subiu 13,5%, castigando os mais pobres, que consomem uma parcela maior de sua renda com itens básicos. O feijão “carioquinha” subiu 19% e pode faltar no mercado, a farinha de trigo, quase toda importada, subiu 27,8%. Os recordes ficaram por conta do gás de cozinha e da gasolina que subiram quase 30%, e do óleo diesel, que subiu 52,3%. Situação que deve ser agravada com o aumento do consumo no segundo semestre, para desaguar a safra agrícola. Ainda corremos o risco de enfrentar o desabastecimento do produto. A estratégia de vender refinarias da Petrobrás e represar investimentos nos projetos em andamento não ajudou o País a manter sua soberania energética, nem alimentar. O Brasil não está sem rumo. O Brasil está no rumo errado.
[1] II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]: -- São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert : Rede PENSSAN, 2022.
Fonte: Alexandre Ferraz – Economista e doutor em Ciência Política e Técnico do Dieese (Subseção Dieese/CONTAG)