O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, instânciamáxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência naesfera federal, criado pela Lei nº 8.242 de 1991, é o órgão responsável por tornar efetivos os direitos,princípios e diretrizes contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069 de 1990.
Pela presente nota, vem expressar profunda contrariedade ao Projeto de Lei 1904/2024,em pauta na Câmara dos Deputados, que busca equiparar o aborto a crime de homicídio emdeterminados casos, inclusive afastando a excludente de punibilidade prevista na hipótese de aborto nocaso de gravidez resultante de estupro, garantido pelo Código Penal brasileiro desde 1940.
Em junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o Requerimento de Urgência doProjeto de Lei 1904/2024, o qual representa um retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aosdireitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual, violando a Constituição Federal, oEstatuto da Criança e do Adolescente e diversas normas internacionais das quais o Brasil é signatário.
É imprescindível lembrar que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública,em 2022, 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram crianças e adolescentes e 61,4% das vítimas deestupro tinham no máximo 13 anos. Ainda, os dados demonstram que 2022 foi um ano em quecresceram os índices de todas as formas de criminalidade marcadas pela violência de gênero queatingem centenas de milhares de mulheres e meninas em todo o país. Com 56.820 vítimas, houve umincremento de 8,6% nos casos de estupro de vulnerável. Ou seja, trata-se de um cenário que deveriaatrair a atenção do Congresso no sentido de ampliação da proteção, e não de punir e restringir osdireitos de mulheres e, especialmente, de crianças e adolescentes, detentoras da garantia de seusdireitos com absoluta prioridade, conforme preconizado pelo artigo 227 da Constituição Federal, emevidente violação ao princípio da vedação ao retrocesso social.
A proposta legislativa ignora completamente a realidade das crianças e mulheres queenfrentam situações de estupro e que têm o direito de não serem submetidas a uma nova violência,sendo obrigadas a gestar e parir. Embora a prática de relações sexuais ou atos libidinosos com menoresde 14 anos configure estupro de vulnerável independentemente do consentimento da vítima, dados doSistema Único de Saúde demonstram que 12 mil meninas de 8 a 14 anos estavam grávidas em 2023.
Infelizmente, milhares de crianças e adolescentes, majoritariamente negras, dão à luztodos os anos, apesar de terem o direito ao aborto legal. Segundo o Anuário Brasileiro de SegurançaPública, em 2022, 56,8% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável eram pretas ou pardas,evidenciando também um aumento desse indicador com relação aos anos anteriores. As consequênciaspara crianças, adolescentes e mulheres negras, maiores vítimas de violência sexual, aniquilamsubjetividades e destroem vidas, devido aos profundos traumas e que, agora, ainda correm o risco deserem obrigadas a dar continuidade a uma gestação indesejada e imposta pela violência.
Crianças e adolescentes são as que mais sofrem abusos, violências obstétricas e tem suasvidas e existências ceifadas tanto pela violência dos abusadores, como pela violência institucional a qualsão submetidas posteriormente. Erradicar a violência contra crianças, adolescentes e mulheres é umcompromisso do CONANDA e, para tanto, é necessário o enfrentamento ao machismo e ao racismo egarantir direitos desta população que é historicamente vulnerabilizada e violentada em nosso país, tendosuas vidas e saúdes diretamente impactadas com a violência e com Projetos de Lei, como no caso emtela, que ainda tem o condão de gerar uma ampla insegurança jurídica.
A gestação, como a concretização de uma situação de estupro e a obrigatoriedade doprosseguimento da gravidez é uma nova violência, um processo de revitimização agora imposto peloEstado brasileiro, e que pode ser comparado com situações de tortura. Apenas a inviolabilidade doscorpos das crianças e adolescentes permitirá o seu pleno desenvolvimento fisico, social, psíquico eemocional, o que significa que é preciso interromper qualquer tipo de violências e de imposição queimpeça crianças de sonhar e de construir projetos de vida, violando direitos fundamentais à vida, àdignidade humana e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,crueldade, opressão, tortura e tratamento cruel ou degradante.
Defende-se que a normativa referente ao abortamento legal seja integralmente efetivadana prá,ca com a oferta do procedimento em serviços públicos de forma acessível, protegida e segura,observando-se as garantias fundamentais previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, compromoção de medidas de acolhimento e atendimento humanizado e especializado, com os mais amploscuidados relativos à saúde física e mental de crianças e adolescentes.
Por fim, destaca-se que, com a alteração proposta, a pena prevista para mulheres emeninas vítimas de estupro se tornará maior (de seis a vinte anos de reclusão) do que a pena previstapara o crime de estupro de vulnerável (de oito a quinze anos de reclusão), o que significa umacriminalização majorada contra as vítimas, não sendo observada pelos legisladores a proporcionalidadeentre as penas e delitos previstos no Código Penal, bem como a revitimização de mulheres e criançasvítimas de estupro.
Diante do exposto, o CONANDA posiciona-se contrário ao Projeto de Lei 1904/2024, queimpõe sofrimento, tortura e coloca em risco a saúde, a integridade Gsica e mental e a dignidade demilhares de crianças e adolescentes que são cotidianamente violentadas sexualmente em nosso país.
Criança não é mãe!
MARINA DE POL PONIWAS - Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)