Entre os diversos resultados doEncontro Nacional de 20 anos de Educação do Campo e Pronera, realizado entre os dias 12 e 15 de junho em Brasília pelo Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), esteve a produção de um manifesto político em favor da educação pública do campo. O documento, assinado pelo Fonec e pela Comissão Pedagógica Nacional do Pronera, foi debatido em grupos de trabalho durante o evento e aprovado em plenária.
Você pode ler o documento na íntegra logo abaixo:
CARTA-MANIFESTO 20 ANOS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E DO PRONERA
LULA LIVRE!
EDUCAÇÃO É DIREITO. NÃO É MERCADORIA.
Somos camponesas e camponeses, educadoras e educadores da Educação Infantil, das escolas de Educação Básica, da Educação de Jovens e Adultos, dos Institutos Federais, dos Centros Familiares de Formação por Alternância, das Universidades, estudantes da Educação do Campo, gestoras e gestores no âmbito público, dos Movimentos Sociais Populares e Sindicais. Reunidos na Universidade de Brasília, nos dias 12, 13, 14 e 15 de junho de 2018 a fim de celebrar e demarcar os 20 anos da Educação do Campo e do PRONERA, nos dirigimos à sociedade brasileira por meio desta Carta-Manifesto para tornar pública nossa leitura a respeito do atual momento político pelo qual passa o País, seus efeitos sobre os direitos das/os trabalhadoras/es, especialmente sobre a educação do povo do campo, das águas e das florestas e apresentar nossos compromissos e nossa agenda de lutas.
O momento atual é de crise estrutural da sociedade brasileira, com o aprofundamento do golpe imperialista, midiático-jurídico-parlamentar deflagrado em 2016. Trata-se de uma crise econômica, que acirra os conflitos de classe ao dirigir a maior parte da economia para o capital estrangeiro. A crise também é ambiental, hídrica, política do Estado burguês, que demonstra esgotamento na sua capacidade de assegurar direitos; há falta de representatividade da sociedade no bojo do Estado, impondo o Estado de Exceção em detrimento do Estado Democrático.
As medidas econômicas liberais adotadas pelo governo atual ratificam estas afirmações, como: a Emenda Constitucional nº 95, que congela os investimentos totais do País para assegurar os lucros ao capital financeiro; a entrega do Pré-Sal aos grandes conglomerados transnacionais, aliado à abertura do capital da Petrobras para o setor privado, causa principal da crise dos combustíveis; a Reforma Trabalhista e os ataques à Previdência Pública; os cortes orçamentários, contingenciamentos e criminalização das ações das/os docentes, gestoras/es e das próprias Universidades e Institutos Federais, colocando em risco a autonomia universitária; a ofensiva da Escola sem Partido; a militarização das escolas; a criminalização das ações dos Movimentos Sociais Populares e Sindicais; e a judicialização dos projetos desenvolvidos com estes sujeitos coletivos. Tais medidas têm provocado um agravamento da crise social que recai sobre a classe trabalhadora do campo e da cidade, com o aumento dos desempregados, que já representam 13% da força de trabalho brasileira; a perda das condições de emprego e renda e a escalada crescente da violência, majoritariamente contra jovens, pobres, negras/os, LGBT´s e contra as mulheres. Dados do Atlas da Violência 2018 mostram que, proporcionalmente, são em média 30,3 homicídios para cada 100 mil pessoas – a maior taxa já registrada no Brasil. Cresce o número de mulheres assassinadas. O ano de 2017 registrou 4.473 casos de feminicídios, um aumento de 6,5% em relação ao ano de 2016. Isso significa que uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil.
Acerca de questões diretamente ligadas ao campo, vale destacar que a suspensão da política de Reforma Agrária, a prioridade da política de titulação e consolidação de assentamentos, o desmonte da política de assistência técnica, as medidas que sinalizam a redução das áreas quilombolas e indígenas demarcadas, a permissão para aquisição de terras por estrangeiros revelam-se em favor da expansão do agronegócio. Tais pontos impedem um projeto de desenvolvimento comprometido com a soberania alimentar da população brasileira e impõem o acirramento das já históricas estatísticas de violência, em todas as suas formas.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra, o Relatório sobre Conflitos no Campo de 2017 destaca o maior número de assassinatos em conflitos no campo dos últimos 14 anos (foram 71 crimes desta natureza, 10 a mais que no ano anterior, quando foram registrados 61). 31 destes assassinatos ocorreram em 5 massacres, o que corresponde a 44% do total. Além do crescimento no número de mortes, houve aumento em outras violências. Tentativas de assassinatos subiram 63% e ameaças de morte, 13%. Trata-se, por fim, de um modelo econômico ancorado no agronegócio, hidronegócio, mineronegócio e sua apropriação privada dos recursos naturais (água, minerais e biodiversidade), contra o qual devemos combater. O avanço do agronegócio se sustenta com o financiamento do Estado brasileiro, que garante sua expansão expropriando a terra, as águas, as florestas, territórios de camponesas/es, indígenas, quilombolas, ribeirinhas/os, pescadoras/es e a diversidade de formas de existência.
O sistema do capital é uma forma necessariamente violenta que se estrutura sobre a exploração do trabalho humano, a opressão de classe, étnico-racial e de gênero, diversidade geracional e a depredação da natureza. Seu objetivo último é a reprodução ampliada do capital, apropriando-se privadamente das forças e da capacidade humana e da natureza como mercadorias. Nesse sentido, a Educação tem sido uma área prioritária para expansão dos interesses do capital em nosso país. O empresariado impõe alterações significativas na legislação. Não à toa, a primeira medida pós-golpe foi a reforma do Ensino Médio por meio da Medida Provisória 746/2016, que revela o caráter antidemocrático da medida, instituindo uma lógica gerencialista à gestão escolar e um currículo de natureza neotecnicista, abrindo espaço para a entrada solene e formal das empresas e suas organizações na disputa pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), que movimenta um orçamento anual de mais de 130 bilhões de reais.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do MEC e sua intencional invisibilização da Educação do Campo estão dentro de uma política educacional que propõe “melhorar” a educação brasileira por meio da articulação do ensino às avaliações censitárias (de todas/os as/os estudantes) em escala nacional. A BNCC terá a função de padronizar competências, habilidades e conteúdos de Norte a Sul, determinando o que as escolas devem ensinar e em que tempo. Em vários países onde esta política educacional foi implantada, inclusive nos Estados Unidos, não se observou melhoria nos níveis de educação. No entanto, floresceram tanto a indústria educacional quanto a privatização da educação. Tal medida, somada aos cortes nas bolsas das/os indígenas, quilombolas e pessoas de baixa renda, aos cortes nos recursos gerais das Universidades – em que as/os primeiras/os a serem atingidas/os são as/os estudantes das periferias das cidades e estudantes do campo – indicam um período de fechamento do acesso das classes trabalhadoras do campo e da cidade ao Ensino Superior.
O orçamento do PRONERA, reconhecidamente uma das mais importantes políticas de educação construída nos últimos 20 anos, desde o Golpe vem sofrendo drásticas reduções. Em 2008, quando completou 10 anos, executou um orçamento de R$ 70 milhões. Em 2018, chegou ao ponto mais crítico de sua história, com aporte de apenas 3 milhões de reais, agravado ainda pelo corte de 1,8 milhão antes do final do primeiro semestre, segundo dados do Incra. Não bastasse o desmantelo, há o anúncio de Diretrizes Curriculares do Ensino Médio que determinem a oferta de 40% na carga horária do Ensino Médio e 100% da carga horária da Educação de Jovens e Adultos à distância, bem como que contabilizem as horas de cursos de qualificação profissional e de tempo de trabalho voluntário na carga horária do Ensino Médio e suas modalidades. Estas questões são medidas restritivas ao acesso e permanência com qualidade à Educação Básica em um País no qual apenas a metade da população jovem com idade entre 15 e 17 anos está no Ensino Médio; aproximadamente 20 milhões de pessoas acima de 18 anos não concluíram a Educação Básica; registra um índice médio de 20% de homens e mulheres analfabetas no campo; fechamento de 37 mil escolas no campo nos últimos 10 anos, onde o índice de escolaridade é de, em média, 4,5 anos de escolarização contra 7,8 da cidade.
Nestes vinte anos de luta da Educação do Campo e do PRONERA, escreveu-se um novo período na História da Educação em nosso país. Não é mais possível aos livros de História de Educação no Brasil não acrescentar mais um capítulo à sua periodização: a construção da Educação do Campo! O protagonismo dos Movimentos Sociais Populares e Sindicais do campo, aliados aos realizados pela Educação Básica e Superior de todo o país, juntos na luta pelo direito à educação dos camponeses, foi capaz de construir um imenso patrimônio de práticas educativas, que não pode mais ser apagado, porque fincou raízes dentro de nós: construímos juntos uma nova forma de educar.
Parte destas conquistas se materializa em políticas públicas e devemos lutar por sua manutenção. Parte relevante de nossas conquistas extrapola o Estado em ação e a nós pertence enquanto classe trabalhadora: a consciência de que somos sujeitos de direitos. São conquistas importantes as políticas públicas que juntos construímos nestes vinte anos de luta. Todas elas: o PRONERA; a Residência Agrária; o Procampo – Licenciaturas em Educação do Campo; o PRONACAMPO; o Saberes da Terra; o PNLD Campo; o Observatório da Educação do Campo; o PIBID Diversidade; o Escola da Terra; o PET Campo; as bolsas específicas para estudantes indígenas e quilombolas, entre outras, ainda que com imensas limitações, significam a conquista de fundos públicos para a garantia do direito à educação dos trabalhadores.
Nossas práticas educativas compreendem a imprescindível necessidade de superação da sociabilidade gerada pela sociedade capitalista, cujo fundamento organizacional é a exploração do ser humano sob todas as formas, a geração incessante de lucro e a extração permanente de mais-valia. Ao contrário desta perspectiva, nossas práticas educativas têm como horizonte formativo o cultivo de uma nova sociabilidade, na qual o fundamento encontra-se pautado na superação da forma capitalista de organização do trabalho, na associação livre das/os trabalhadoras/es, na solidariedade e na justa distribuição social da riqueza construída coletivamente pelos seres humanos. Cultivamos exatamente estas concepções e ações nos últimos vinte anos, que afrontam classes dominantes – as quais elaboraram o “Escola sem Partido” e que objetivam barrar nossas conquistas, manter as condições de exploração das/os trabalhadoras/es e de sua alienação.
Com nossas lutas e ações da Educação do Campo, conquistamos um território há séculos bem cercado, protegido e isto tem ameaçado as classes dominantes, que tudo fazem para extinguir e se apoderar das nossas conquistas, dos fundos públicos dos quais nos apropriamos. Isso ocorre não pelo volume de recursos que as políticas públicas conquistadas pela classe trabalhadora representam, porque ele é ínfimo, quase ridículo no orçamento geral do Estado brasileiro. O que realmente está em questão é o potencial de multiplicação geométrica inerente às ações viabilizadoras da luta contra o capital.
Nós nos apropriamos da própria produção do conhecimento científico e sistematizado. Nós escrevemos nossa história e não aceitaremos mais que nos silenciem, que inviabilizem a nossa produção do conhecimento. Estamos na história, fazemos história e temos memória histórica – nós mesmos a registraremos, a construiremos com nossas lutas, escrevendo nosso futuro.
Nossos compromissos de luta e construção da Educação do Campo e do PRONERA
A luta pela Educação do Campo, pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada deve estar comprometida com a defesa da democracia e com a construção de uma sociedade igualitária, sem exploração do trabalho e da natureza, baseada na Reforma Agrária e Reforma Hídrica, com um projeto popular de agricultura, pesca artesanal, extrativista vegetal, gestão das águas, saúde e cultura para todas/os as/os trabalhadoras/es do nosso País. Defendemos um Projeto Popular para o Brasil que visa fortalecer a economia nacional, o desenvolvimento autônomo, soberano e que enfrente as desigualdades de renda e direitos.
Nós nos comprometemos:
1. Construir a Reforma Agrária Popular, com destinação das terras a quem nela vive, trabalha e a quem está impossibilitado de trabalhar porque delas foi expropriado. Construir a agricultura camponesa como modo de fazer agricultura e de viver das famílias que, tendo acesso à terra e aos recursos naturais que ela suporta, resolvem seus problemas reprodutivos por meio da produção rural, nos seus distintos modos de existência que lhes é própria, seja em relação ao modo de produzir e à vida comunitária, seja na forma de convivência com a natureza;
2. Afirmar a agroecologia como matriz tecnológica, princípio social/pedagógico e projeto de agricultura camponesa/familiar e nosso engajamento com a produção de conhecimento e desenvolvimento da agricultura, da pesca, do extrativismo vegetal a partir da perspectiva da agrobiodiversidade, do agroextrativismo, da segurança e soberania alimentar dos territórios;
3. Lutar pela superação de todas as formas de exploração do trabalho humano e da opressão étnico-racial, cultural, política, de gênero, diversidade geracional, religiosa e de classe;
4. Ratificar os compromissos assumidos pela Conferência Nacional Popular de Educação contidos na Carta da Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE) 2018, reafirmando nossa luta com as/os trabalhadoras/es na defesa da educação pública e gratuita com gestão pública;
5. Reafirmar veementemente que FECHAR ESCOLAS, TURNOS E TURMAS SÃO CRIMES! E nos mobilizarmos permanentemente contra as estratégias de desmantelamento da Educação, as iniciativas do Estado e do setor privado que impeçam o acesso das/os camponesas/es à escola DO campo, NO campo;
6. Combater a privatização da educação pública em todas as suas formas, tanto na formação inicial/continuada quanto na gestão, e seguir na defesa de uma educação pública e gratuita desde a Educação Infantil até a Universidade;
7. Atuar contra as reformas empresariais instituídas por meio da reforma do Ensino Médio e da BNCC e as propostas de transformar EJA e Ensino Médio em Educação à Distância (EaD), que buscam subordinar a Educação Básica às exigências do mercado, reduzindo as dimensões formativas a exames de avaliação contínuos, aprofundando a exclusão;
8. Repudiar veementemente a militarização das escolas e lutar por políticas emancipatórias que visem a superação dos mecanismos de subordinação das/os camponesas/es;
9. Avançar com os princípios da Educação do Campo nas escolas do campo e na formação de educadoras/es. Buscar a construção de uma escola ligada à produção e reprodução da vida, que tome o trabalho socialmente produtivo, a luta social, a organização coletiva, a cultura e a história como matrizes organizadoras do processo formativo, com participação da comunidade e auto-organização de educandas/os e de educadoras/es;
10. Reafirmar a interface entre a Educação do Campo e a Educação Especial, garantindo ingresso, permanência, acessibilidade e inclusão das/os educandas/os com deficiência nas escolas do campo, das águas e das florestas;
11. Fortalecer a luta em defesa do PRONERA e das Licenciaturas em Educação do Campo nas Instituições de Ensino Superior com as condições necessárias, como moradia estudantil;
12. Lutar pela inserção dos egressos dos Cursos de Licenciatura em Educação do Campo nas escolas do campo por meio de concurso público e editais que contemplem a formação de acordo com as habilitações da Educação do Campo; e
13. Fortalecer a organicidade do FONEC por todo o território nacional, organizando Fóruns, Comitês e Articulações estaduais com representatividade de todos os sujeitos, com princípios e ações de resistência e de luta pelo direito à Educação do Campo, no campo.
Seguiremos lutando. Seguiremos resistindo. Seguiremos estudando. Não só na escolarização básica, limite que a ânsia do lucro dos capitalistas nos reserva. Seguiremos avançando como fizemos nestes últimos vinte anos. Seguiremos nos formando: agrônomas/os; historiadoras/es, advogadas/os, médicas/os, professoras/es e em todos os outros segmentos profissionais que um projeto popular de Reforma Agrária requer. Seguiremos também disputando as Universidades e os Institutos Federais. E nestes faremos não apenas mestrados e doutorados; nós também seremos seus docentes. Como assim já o são dezenas de estudantes nossos que passaram pelo PRONERA. A história nos pertence. A vitória, ainda que demorada, será da classe trabalhadora.
EDUCAÇÃO É DIREITO. NÃO É MERCADORIA.
VIVA A EDUCAÇÃO DO CAMPO e VIVA O PRONERA!
LULA LIVRE!
VIVA MARIELLE FRANCO! VIVA ANDERSON!
FORA TEMER!
Brasília-DF, 15 de junho de 2018. FONTE: Assessoria de Comunicação CONTAG - Lívia Barreto