Por José Graziano da Silva
A persistência da desigualdade contribui muitas vezes para naturalizar suas manifestações, entorpecendo o olhar de sociedades expostas à secular convivência com seus desdobramentos. A fome é uma das cicatrizes desfiguradas por essa mutação da história social em história natural, ofuscada pela espessa neblina ideológica que ora embaralha causa e conseqüência, ao atribuir a fome aos famintos, ora recorre a dissimulações de ocasião para justificá-la. A "bomba demográfica" foi uma dessas causalidades abraçadas pelo neomalthusianismo. Como foi desarmada com ajuda da Revolução Verde nos anos 70 e não explodiu, seguidores modernos do pároco inglês voltam-se agora para a agroenergia.
No Dia Mundial da Alimentação, comemorado na data de sua fundação - 16 de outubro -, a FAO considera oportuno esclarecer que o acesso ao alimento é um direito de todos perfeitamente compatível com o padrão tecnológico do nosso tempo. A persistência de 850 milhões de famintos no século XXI não é outra coisa senão o custo de concepções políticas que subutilizam o potencial do desenvolvimento econômico e cristalizam relações desiguais de acesso à riqueza disponível.
A verdade é que em nosso continente apenas o Haiti produz menos alimentos do que necessita para suprir as necessidades básicas do seu povo. Na média, a América Latina e o Caribe produzem 31% a mais; no Brasil o excedente é de 41% e, no entanto, 52 milhões de pessoas vivem a rotina desoladora da fome na região.
Pior: temos 9 milhões de crianças desnutridas, o que comprometerá uma nova geração inteira de latinoamericanos no futuro se nada for feito de imediato. A fome é ao mesmo tempo causa e conseqüência da pobreza, um círculo vicioso retransmitido nas sucessivas gerações pelas crianças subnutridas. Uma criança com fome pode até ir à escola, mas não aprenderá o suficiente para mudar a sua condição de excluído. Se não tomar leite até os cinco anos, não conseguirá cuidar de uma vaca quando adulto.
Por isso os programas de merenda escolar, especialmente quando associados às compras no local da agricultura familiar, como temos em várias escolas brasileiras, é considerado pela FAO como símbolo de um programa municipal de segurança alimentar bem-sucedido.
Nos últimos anos, graças a uma convergência de governos progressistas, as políticas sociais recuperaram espaço na agenda regional. A fome deixou de ser tratada pela ótica do assistencialismo e a segurança alimentar ganhou, em alguns casos, o estatuto de uma obrigação de Estado, como se verificou no Brasil com a aprovação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), em 2006. O mesmo acontece na Argentina, Equador e na Guatemala, formando um cinturão social inovador que a FAO regional cuida de conectar aos demais governos com a iniciativa "América Latina e Caribe Sem Fome".
Décadas perdidas fizeram da AL o continente de maior iniquidade, com regiões que superam até a média de pobreza africana
Acudir a fome - que tem pressa -, mas de forma articulada com um leque de políticas de geração de trabalho e renda, foi a novidade conceitual introduzida pelo Programa Fome Zero brasileiro em 2003. Um guarda-chuva de ações incluindo um programa emergencial de transferência de renda aos mais pobres - antes o Cartão Alimentação, hoje a Bolsa Família - com programas estruturais, como a expansão do crédito para a agricultura familiar (Pronaf); compras diretas do governo junto a pequenos produtores, entre outros e, mais recentemente, o selo social do biodiesel. Apenas em 2006, quase seis milhões de brasileiros saltaram a linha da pobreza. Em toda a América Latina, a incidência da fome recuou de 13% para 10% sobre o total da população nos últimos três anos.
Avanços significativos, num curto ciclo histórico recente, confirmam a possibilidade de erradicar completamente essa chaga, desde que se dê transparência às suas causas para melhor equacioná-las. Reconhecer a força inercial dos equívocos cometidos na política econômica dos anos 80 e 90, que impuseram crises e estagnação, certamente ajuda a entender melhor o problema do que abraçar explicações de simplicidade tão irretocável quanto falsa.
O fato verdadeiro é que duas "décadas perdidas" produziram e acentuaram desigualdades continentais, transformando a América Latina no continente de maior iniquidade do planeta, com regiões e países que superam inclusive a média da pobreza africana. Na raiz do problema encontra-se a reversão do ciclo de liquidez e juros baixos no início dos anos 80, que impôs ao continente latino-americano um longo jejum de divisas que se tentou compensar através de uma elevação irrefletida das taxas de juros.
A escrituração-síntese dessa contabilidade devastadora foi a irrupção da fome que se propagou pelo continente, arrastando a vida de milhões de latino-americanos pobres para invadir até mesmo a casa da outrora sólida classe média argentina. Felizmente os ventos mudaram na região. A América Latina e o Caribe entraram em 2007 no seu quinto ano de crescimento econômico consecutivo a uma invejável taxa média de 3% ao ano. Não é um crescimento chinês mas é algo que a maioria dos países da região não tinha há anos; e começou também a reduzir a sua pobreza, especialmente a pobreza extrema. É o que explica a irradiação continental de diferentes versões de programas emergenciais de erradicação da fome, como "El hambre más urgente" da Argentina, ou "Desnutrición cero" da Bolívia, ou "Hambre Cero" da Nicarágua, apontando para um futuro mais que possível, necessário.
Esse é a pano de fundo do Dia Mundial da Alimentação de 2007. Um dia para começar o futuro recobrindo a mesa nua de fatos que ajudam a contrastar o absurdo dos pratos vazios. Mas, sobretudo, que contribuem para reafirmar a esperança de zerar esse pesadelo da fome na vida das sociedades latino-americanas para sempre.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe. FONTE: Valor Econômico ? SP