Foi ministro de Estado, governador e senador
Leio que a ONU interpela o Brasil por não ultimar a posse da área indígena Raposa Serra do Sol, demarcada voluntariamente pelo governo atual, com fronteira viva com a Guiana, existência de fazendas de arroz há muitos anos e até municípios instalados. A demarcação homologada pelo presidente Lula provocou cizânia entre os próprios índios e revolta dos fazendeiros. Promete dar terras públicas a Roraima, em compensação, mas a questão pode agravar-se, ao tentar a Funai expulsar os não-índios.
A Portaria nº 580 de 15 de novembro de 1991, por mim assinada e homologada pelo presidente Fernando Collor, demarcando a terra ianomâmi, provoca, até hoje, críticas acerbas, mas a origem da demarcação, ao contrário da recente, foi uma sentença judicial. Os críticos ou a desconhecem ou a deturpam. Dois dias depois que assumi o ministério, a Funai me encaminhou sentença do meritíssimo juiz da 7ª Vara Federal determinando a demarcação da terra ianomâmi, em linha contínua, no total de 9.419.108 de hectares.
Na década de 1980, garimpeiros atraídos pelo ouro, revelado pelo Projeto Radam, haviam contatado os ianomâmis. A garimpagem foi desastrosa. A caça desaparecera. Os peixes, o mercúrio os contaminou. Morreram 22% da população indígena, na maioria de gripe e malária. O Brasil era mundialmente acusado de praticar o genocídio dos ianomâmis. No governo João Figueiredo, em 8 de janeiro de 1985, baseada em decreto de 1983, a Funai, subordinada ao saudoso ministro Mário Andreazza, criou o Parque Indígena Yanomami, com superfície de 9.419.108 hectares. Interditou-o e proibiu a presença de não-índios. Os garimpeiros, porém, ignoraram a proibição.
Em 15 de março de 1984, iniciou-se o governo José Sarney. A garimpagem continuou, aumentada a cada dia a crítica da Igreja, sobretudo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e a campanha pejorativa das ONGs, de que as mortes eram causadas pela contaminação de variolosos, deliberadamente enviados para as tribos. Roraima, para cuja receita os garimpos contribuíam muito, pleiteou a revogação da área interditada, o que se deu com a edição dos decretos 97.512 a 97.530 de 16 de fevereiro de 1989, com a divisão do Parque Ianomâmi em 19 áreas indígenas distintas, com a superfície reduzida para 2.435.215 hectares, entremeadas de duas florestas nacionais, para garimpagem, e do Parque Nacional do Pico da Neblina.
Estava revogado o ato de janeiro de 1988. Imediatamente (12 de março de 1989) o Ministério Público recorreu à Justiça Federal, propondo medida cautelar contra a União Federal, para manter a decisão governamental anterior. O juiz da 7ª Vara Federal concedeu liminar. Ouvido, o governo Sarney não convenceu o magistrado, que deu provimento ao Ministério Público e sentenciou mandando restabelecer o ato anterior.
Decidi, preliminarmente, caracterizar a linha contínua, que atingia a fronteira. Sobre isso, ouvi ministros. O Itamaraty não viu inconveniente e opinou pelo cumprimento da sentença. O Exército delegou ao chefe do Gabinete Militar propor fosse ouvido o Conselho de Defesa. Não era o caso, porque o Conselho de Defesa, presidido pelo presidente da República, só "opina na utilização (e não na demarcação) de áreas indispensáveis à segurança do território nacional" (artigo 91 da Constituição). A Marinha sugeriu que a linha contínua ficasse aquém de 20km da fronteira, aliás morta e precariamente delimitada.
O artigo 231 da Constituição impossibilitava a sugestão da Marinha. Do consultor jurídico do meu ministério, o parecer que pedi quanto à soberania nacional dizia: "A demarcação ordenada pela Justiça não implica abdicação de qualquer parcela da soberania do Estado sobre as referidas terras, nem restrição ao dever-poder de velar pela sua integridade como componente do território nacional, cuja defesa a Constituição atribui, precipuamente, às Forças Armadas".
Assinei a portaria e o presidente Collor a homologou em cumprimento à sentença do magistrado. A partir daí militares e civis, exacerbados, fizeram críticas alarmistas, desmedidas e injuriosas. Um artigo no Jornal do Brasil, do ministro Clóvis Ramalhete ? a pedido dos detratores ? dizia que dois anos depois (em 1993) a "nação ianomâmi" seria incorporada aos Estados Unidos, por resolução da ONU, que já estaria em curso. Resolução que o Itamaraty viria a desmentir.
"Nação ianomâmi" jamais existiu em qualquer documento nosso. Nunca assim a reconhecemos. De resto, o artigo 20 da Constituição define terra indígena como "um bem da União" e não dos índios. Três vezes os inconformados recorreram ao Supremo, alegando ameaça à soberania nacional. Perderam. Chegaram a omitir uma linha inteira de minha portaria!
Projeto de decreto legislativo, para diminuir a área ("muita terra para poucos índios"), foi rejeitado no Senado. Só seria o caso se se tratasse de projeto de colonização, e não de área de posse imemorial regulada nos termos do artigo 231 da Constituição. A decisão, no governo Figueiredo, estava certa; menos para Roraima, que perdeu a renda dos garimpos. A soberania nacional continua intocável. O Brasil deixou de ser atacado como genocida e a terra ianomâmi pertence à União. FONTE: Correio Braziliense ? DF