Dos senegaleses que me cercam, apenas um fala português. Mal, mas fala. Serve como intérprete. Todos aguardam a emissão de documentos, condição para poder seguir viagem. Rio Branco é apenas lugar de passagem. Para evitar a superlotação no abrigo atual, o governo estadual tem providenciado ônibus para São Paulo. A medida facilita a vida dos que sonham com empregos em centros industriais e metrópoles mais ricas, e evita que se repita o colapso ocorrido no primeiro abrigo improvisado, este em Brasiléia, na fronteira do Brasil com a Bolívia, onde mais de 2.300 estrangeiros chegaram a viver amontoados.
O transporte é gratuito, mas só embarca quem tiver com a documentação em ordem: passaporte com protocolo de ingresso no país, carteira de trabalho e CPF. Trata-se de uma estratégia do governo estadual para tentar garantir que os recém-chegados tenham seus direitos preservados. Enquanto os documentos não ficam prontos, os estrangeiros tentam aprender mais sobre o que os aguarda. Como a maioria dos que chegam pelo Acre, todos eles pediram refúgio para entrar no país. Um deles mostra um papel e quer saber minha opinião. "Cazzias do Sul? Cazzias? Indústria? Emprego?" Demoro a entender. Caxias do Sul (RS). Sim, tem indústria em Caxias do Sul. Mal começo a responder, outro exibe mais um papel. "Anápolis. Indústria? Porto Alegre? Santa 'Katrina'?”.
Aliciamento
Muitos têm o rumo definido, seguindo o caminho já tomado por familiares e amigos. Outros parecem abertos a qualquer possibilidade, sem muita noção do que é o Brasil e do que encontrarão pela frente, uma situação de vulnerabilidade que tem atraído aliciadores. Valendo-se de falsas promessas ou fraudes, estes estabelecem redes de tráfico de pessoas para exploração de trabalho escravo ou exploração sexual. Os funcionários que cuidam do abrigo tentam evitar a ação, mas nem sempre conseguem.
“Há fazendeiros que chegam buscando gente para trabalhar na pecuária ou na agricultura e nem falam com a gente. Tem um que veio, pegou quatro trabalhadores, ficou com eles dois meses sem pagá-los e depois veio devolver como se eles fossem coisas”, conta Antonio Carlos Ferreira Crispim, funcionário da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social do Acre e um dos coordenadores do abrigo. “Recebemos denúncias de trabalhadores que ficaram meses trabalhando e só recebiam a refeição.”
As denúncias de violações são constantes e não se restringem ao Acre. Desde 2013, quandoaconteceram os primeiros resgates de haitianos no país, novos casos têm surgido. Em agosto, 12 haitianos foram libertados em uma oficina de costura em São Paulo. Em outubro, dez que trabalhavam na duplicação da BR-163, uma das principais rodovias do país, denunciaram as condições a que acabaram submetidos após serem enganados por promessas falsas.
No Acre, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem acompanhado as tentativas de aliciamento com atenção. Segundo Marcos Cutrim, procurador-chefe da 14ª Região, que reúne as procuradorias no Acre e Rondônia, desde 2010, quando chegaram os primeiros imigrantes, foram instaurados 53 inquéritos civis para apurar se estrangeiros que foram contratados foram vítimas de trabalho escravo e tráfico de pessoas. “Não há nenhuma ação ajuizada por não haver provas”, diz. “Recebemos denúncias de que empresas queriam contratar haitianos pela grossura da canela, pelo tamanho da genitália. Quem foi a Brasiléia viu uma situação que a gente tinha há 300 anos, um mercado negreiro funcionando como nos séculos anteriores”, explica, citando um vídeo de 25 de janeiro de 2012 em que um dos contratantes explica que se trata de “tradição antiga da escravidão” a ideia de que “quem tem canela grossa é ruim de serviço”. “Como são fatos que aconteceram há mais de dois anos, não conseguimos identificar quem foram os responsáveis”, lamenta o procurador.
“Sonho brasileiro”
A falta de diálogo entre os diferentes setores que trabalham com imigrantes e de uma política nacional coordenada para encaminhamento e orientação dos trabalhadores recém-chegados estão entre os principais problemas apontados pelo MPT. Para tentar garantir que direitos mínimos sejam respeitados, o órgão convocou uma Reunião Técnica Intergovernamental em 27 de junho de 2014. O encontro aconteceu na Assembleia Legislativa do Acre e reuniu as principais autoridades que estão lidando com o problema em nível federal e estadual, além de representantes de outros países fronteiriços.
Na reunião, representantes do Grupo de Pesquisa de Trabalho e Migração na Amazônia, da Universidade Federal do Acre, destacaram que “a situação do migrante é preocupante, eles evidenciam em suas entrevistas a decepção por não obterem a promessa do ‘sonho brasileiro’ de salário vultosos, em vez do salário mínimo, e condições péssimas de trabalho”, conformereproduzido na ata do encontro. Ao final, a coordenadora responsável por Migração e Trabalho na Procuradoria Geral do Trabalho, a procuradora Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes defendeu, sintetizando as propostas apresentadas, que “é necessário: solicitar/acompanhar a gestão do abrigo em Rio Branco, para que aprimore os mecanismos de encaminhamento para o trabalho, tanto para garantir publicidade às partes contratantes quanto para permitir o seguimento pelos órgãos de fiscalização, universidades, etc“. Ao Ministério do Trabalho e Emprego ficou definida a responsabilidade de “acompanhar criteriosamente as ofertas de trabalho com foco em evitar condições degradantes de trabalho”.
O órgão também foi cobrado sobre a ausência de estrutura do Sistema Nacional de Emprego (Sine) e ficou de estudar, segundo o procurador Cutrim, a possibilidade de criar uma frente especial para atender os imigrantes. Desde sua criação, o Sine tem o papel de servir como órgão principal de intermediação da contratação de mão de obra, justamente para garantir o cumprimento da legislação trabalhistas e coibir abusos, como o aliciamento para trabalho escravo, ponto extremo de um conjunto de infrações trabalhistas que têm sido bastante comuns na contratação de migrantes.
Rompimento familiar
Antônio Torres, secretário de Desenvolvimento Social do Acre, explica que o governo passou a facilitar a transferência de imigrantes financiando ônibus justamente para tentar minimizar as chances de aliciamento. “Muitos não têm condições de ir por conta própria e isso dava margem para trabalho escravo e rompimento familiar. Tem gente que ficou mais de seis meses esperando uma contratação no abrigo. As empresas são cruéis, chegam com o perfil certo de trabalhador, procuram sempre homens jovens. Poucos levam mulheres e crianças. Há casos em que empresas levaram o marido e deixaram as mulheres aqui. As grávidas ficavam. Tivemos partos aqui”, explica.
O abrigo atual funciona em uma chácara, o oitavo espaço improvisado para receber os imigrantes. Este fica longe do centro de Rio Branco. Segundo Torres, por mês o governo estadual gasta R$ 23 mil de aluguel com o espaço. Ele estima que a administração do Acre gastou até agora R$ 6 milhões para garantir a estrutura mínima para receber os imigrantes, valor no qual está incluído o fretamento praticamente diário de ônibus para levar os imigrantes para São Paulo e ações emergenciais para minimizar a crise humanitária que se instalou quando a cheia do Rio Madeira, ocorrida em 2013, isolou Brasiléia e contribuiu para que o abrigo então instalado na cidade ficasse com mais de 2.300 pessoas.
Do Governo Federal, Torres afirma ter recebido cerca de R$ 4 milhões, valor que ajudou no pagamento de alimentação e outros custos emergenciais. Apesar de o governo estadual seguir a política nacional de acolher os imigrantes em situação vulnerável e ter conseguido repasses importantes para dar continuidade ao trabalho, ele critica a falta de uma política nacional clara para tratar da imigração e do mercado de trabalho. “Se não for feito um trabalho intersetorial, ficam lacunas e deixam possibilidade para tudo. Quando aconteceu a aglomeração [em Brasiléia], tivemos diversas suspeitas de aliciadores para tráfico de pessoas e exploração sexual. Aí a gente acionava a [Polícia] Federal”, resume.
O abrigo em Rio Branco é administrado por funcionários da Secretaria de Desenvolvimento Social do Acre e da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Apesar do esforço do Governo Estadual, o atendimento ainda é marcado pelo improviso e só dá certo por causa do empenho dos funcionários das duas pastas, que se revezam para dar conta de organizar os encaminhamentos para a emissão de documentos e para os embarques. As equipes se viram em portunhol (muitos dos haitianos falam espanhol em função da proximidade com o país vizinho, a República Dominicana), ou fazendo gestos e sinais, e cumprem jornadas prolongadas para dar conta de todo trabalho a ser feito.
A situação é infinitamente melhor do que a do abrigo improvisado em Brasiléia, mas problemas relacionados ao excesso de pessoas abrigadas ou de passagem ainda acontecem. Algumas questões como colapso da fossa ou falta d´água são solucionadas de maneira criativa, com canos improvisados acertando e melhorando a distribuição. Outras, como a ausência de talheres nas marmitas entregues, permanecem sem resolução – na visita ao local, muitos dos estrangeiros improvisavam colheres com as tampas de papelão ou, sem opções, acabavam comendo com as mãos mesmo, por exemplo. Salários menores O secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Nilson Mourão, explica que muitas das empresas que têm buscado imigrantes aproveitam a situação vulnerável de alguns imigrantes. “O cara que está edificando obra no Paraná não quer pagar para o brasileiro o valor que os brasileiros querem. E os haitianos sabem fazer, são bons na construção civil”, explica.
“Os brasileiros não querem mais fazer determinados trabalhos ou cobram muito mais, e os imigrantes fazem o trabalho. Ganham menos, com certeza, mas fazem. É como acontece com os brasileiros lá fora. Quando você chega aos Estados Unidos ou à Europa, vai ver que os americanos e os europeus não querem mais fazer determinados trabalhos ou cobram muito alto para isso. Aí eles pegam os imigrantes, que nesse caso somos nós, os brasileiros”, completa, apontando cidades do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina como principais destinos dos que passam pelo Acre, e os frigoríficos e a construção civil como os setores que mais empregam.
Ele defende que, por mais que haja empenho das duas pastas em garantir que os migrantes sejam tratados de maneira adequada, não dá para o governo estadual assumir integralmente o atendimento. “A decisão não pode ser só manter a fronteira aberta e pronto. Tem que dar estrutura e isso é responsabilidade do Governo Federal”, defende. “O governo deveria melhorar a estrutura do Conselho Nacional de Imigração [CNIg], criar uma agência nacional de imigração. Em médio prazo, deveria criar um fundo de imigração para atender imigrantes em situação de vulnerabilidade”, completa, apontando como exemplo os problemas recentes relacionados à emissão de carteiras de trabalho.
As filas e filas de imigrantes em busca de regularizar a documentação para seguir viagem agravaram nos últimos meses a falta de estrutura na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) em Rio Branco, crise que culminou em paralisações de servidores que se recusavam a continuar atendendo os estrangeiros. A superlotação motivou reclamações também por parte de trabalhadores brasileiros, indignados com as filas crescentes. A situação só foi resolvida após o governo estadual ceder servidores e disponibilizar espaço para a emissão de carteiras e atendimento dentro do abrigo improvisado.
Outro lado A Repórter Brasil procurou ouvir representantes do MTE sobre os problemas descritos nesta reportagem, abrindo espaço para um posicionamento por meio da assessoria de imprensa do órgão em Brasília. Após uma confirmação de recebimento da solicitação, não obteve mais retorno dos representantes da pasta na capital federal. Hoje, o Secretário de Inspeção do Trabalho, Paulo Sérgio de Almeida, acumula o cargo de presidente do CNIg, lidando diretamente com questões migratórias.
No Acre, a reportagem visitou a sede do órgão e conversou com Manoel Rodrigues, superintendente regional, que confirmou a falta de estrutura para fiscalizar infrações e atender de maneira adequada os imigrantes. “Nos deparamos com uma realidade que a gente já sabia: o Ministério do Trabalho especificamente tem uma carência de recursos humanos crônica. A gente fica sem saber o que fazer, a grande verdade é isso.”
“O secretário-executivo [Paulo Sérgio de Almeida] falou que vai ajudar no que puder, mandou computadores. Mas ele não pode mandar gente e a gente precisa de gente. Isso não depende do Ministério do Trabalho e Emprego, depende do Ministério do Planejamento”, lamenta o superintendente. Sobre a inoperância do Sistema Nacional de Emprego (Sine) no tocante à intermediação entre empresários e trabalhadores imigrantes, ele diz que não há nem perspectiva de o sistema passar a ser utilizado por ora.
“O Sine não daria vazão à demanda e não se comunica em nível nacional. Não tem essa capilaridade”, aponta, destacando que, além de se melhorar a estrutura da superintendência local, é preciso uma política integrada para lidar com o problema, com diferentes órgãos atuando juntos. “Isso é um problema de cultura administrativa, cada um faz sua parte e pronto. O certo seria compartilhar as ações”, defende.
“No combate ao trabalho escravo, por que dá certo? Quantos Ministérios têm ali? Lá você algema o fazendeiro valente e o trabalhador sai com o seguro-desemprego na mão. E ainda paga todas as verbas, responde por danos morais. Dá certo quando o Estado consegue compartilhar suas ações, não fica cada um no seu umbigo”, conclui. FONTE: Daniel Santini do Repórter Brasil