Parece ser brincadeira, mas não é. A proliferação de "quilombolas" pelo País afora não conhece mais limites. Quando da Constituição de 1988, eram reconhecidos menos de cem quilombos no Brasil. Hoje a estimativa já é de 4 mil. Será que estamos diante de um novo período de descobrimentos? Alguns já estimam os territórios ditos quilombolas em 22 milhões de hectares. Outros acreditam que haja aqui uma subavaliação. Como se podem "produzir" tantos quilombos, inclusive em zona urbana, ao arrepio de qualquer consideração histórica e do uso da palavra quilombo em nossos dicionários?
O artifício é meramente jurídico. A lei está criando "quilombolas", que proliferam por todo o País, com a ajuda dos ditos movimentos sociais. Não se trata de regularização fundiária de pessoas que já viviam num determinado território, mas de um decreto presidencial, o 4.887, de 2003. Segundo este decreto, basta um grupo de pessoas se autoclassificar como negro e indicar, na verdade, se auto-atribuir, uma terra ou propriedades urbanas para que se dê início ao seu processo de desapropriação, primeiro, na Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, e, posteriormente, no Incra. Laudos ditos antropológicos são solicitados a ONGs ou a professores comprometidos com a causa dos "movimentos sociais" para que o processo siga o seu curso, sem que os proprietários tenham conhecimento do que está acontecendo. Sua triste realidade só se apresenta quando recebem uma notificação do Incra, sem que tenham tido preliminarmente nem o direito ao contraditório. Tomemos um exemplo.
Num belo (ou sombrio) dia, o superior da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no Rio de Janeiro, recebe uma notificação do Incra de que deve apresentar documentos de suas propriedades para sua defesa, pois a área em que exerce trabalho social, na Praça Mauá, no centro, fora reconhecida como área quilombola. A intimação do Incra é uma verdadeira intimidação! Os proprietários é que devem provar que são proprietários, e não os invasores! Imaginem o susto de uma instituição social, que exerce a caridade cristã, tendo de se conscientizar do que está ocorrendo e se defender, num processo de tipo kafkiano. Kafka, se tivesse conhecido o Brasil, não teria tido a necessidade de fazer uma obra de ficção: bastaria descrever a realidade!
A Ordem atende, nessa zona portuária, 1.070 alunos, que freqüentam uma escola que vai da educação infantil ao ensino médio. É um primor, com crianças rindo, estudando, jogando e comendo. Seu refeitório, com alimentação abundante, serve várias refeições ao dia. Os banheiros, um exemplo de limpeza. Aqueles jovens, negros, brancos, pardos, mestiços e mulatos, são alegres, exibindo, para quem quiser ver, a qualidade do trabalho que lá é feito. Aqueles rostos infantis são cativantes. Algumas dessas crianças são órfãs de pai e mãe. A Ordem já está pensando em construir uma casa especial para elas, onde possam ter uma vida digna.
O serviço comunitário, também muito desenvolvido, engloba todo um trabalho de humanização do bairro, com centro de saúde, creche, aconselhamento psicológico e cursos profissionalizantes. Dentre estes, no total de 18, destacam-se bordado, arte, música, saúde, informática, moda e salão de beleza. Adultos têm, assim, chances de refazer sua vida, reciclando-se e conhecendo novas oportunidades. Funcionam no local uma biblioteca, uma escola de música popular, uma casa de cultura, uma gráfica, uma marcenaria e uma padaria.
Ora, todo esse trabalho está sendo agora ameaçado. Na origem do processo, cinco pessoas que invadiram uma casa e reivindicam para si 70 propriedades, num valor médio de R$ 250 mil. Essas cinco pessoas nem nasceram no bairro. Já obtiverem "laudos" (pergunto-me o que isso pode bem significar) que lhes dão "direito" a essas propriedades. Os ideólogos da "justiça social" devem estar muito satisfeitos com tal atentado à justiça - esta, sim, real -, de crianças e adultos, das mais diferentes cores, que terão sua vida prejudicada. O narcotráfico, presente nessa área, deixa a comunidade em paz. Os "justiceiros" da causa social, não.
A Ordem possui títulos de propriedade que remontam a 1704, além de um documento do príncipe regente, de 1821, que lhe dá "o senhorio directo de terrenos no bairro da Prainha". Ou seja, ela se encontra nesses locais há 303 anos. Sua história e sua tradição nessa região não deixam nenhum lugar a dúvidas, salvo para os que se estão acostumando a contestar qualquer tipo de propriedade, como se esta fosse o alvo maior que deve ser atingido em quaisquer circunstâncias. Paradoxalmente, a Igreja, que tanto fez para a formação deste país, está sendo vítima de suas próprias ações de invasões de terras, sob a bandeira da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Aliás, qual é a posição da CPT a respeito dessa "desapropriação"?
O ex-PFL, hoje Democratas, ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin nº 3.239), em junho de 2004, contestando o decreto presidencial. Um dos seus argumentos é que um decreto não pode regulamentar um artigo constitucional. Do contrário, teríamos atos arbitrários do Poder Executivo, tornados legítimos e legais, abrindo uma caixa de Pandora cujas figuras podem ser aterradoras. Passados quatro anos, esse julgamento até agora não ocorreu. Propriedades e terras pelo Brasil afora estão sendo objeto do arbítrio de auto-intitulados movimentos sociais, que agem abrigados pela "lei" e por órgãos estatais afinados com suas propostas políticas. Trata-se de um problema constitucional da maior relevância que não pode ser mais postergado, sob pena de o País defrontar-se com situações irreversíveis. O STF tem-se colocado à altura das maiores aspirações do Brasil. Não esqueçamos que o arbítrio é a face visível do autoritarismo.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br FONTE: Estado de São Paulo ? SP