A luta pelo desenvolvimento inclui a construção de vantagens comparativas muitas vezes ancoradas em políticas de Estado. A persistência de barreiras tarifárias e a insistência dos países ricos em subsidiar seus agricultores - em geral, os maiores - é um desses casos.
A mesma prática ameaça agora se instalar na esfera da agroenergia, mascarando alternativas mais eficientes. Há, todavia, limites à competitividade induzida pela ação pública. Para viabilizar o etanol do milho por exemplo, os EUA transferem créditos tributários aos seus produtores em valor equivalente a 56% do preço por litro. Em contrapartida, o etanol brasileiro, cujo custo é metade do milho, com eficiência energética oito vezes superior, é taxado em US$ 23 o barril para entrar nos EUA. Nos países europeus, subsídios aos produtores locais podem somar até quatro vezes o custo de fabricação do álcool brasileiro.
Se o protecionismo consegue anular até a competitividade do etanol brasileiro, que chances terão os demais países latinoamericanos e africanos de ocupar um espaço relevante no ciclo que se inicia?
Ao estrangular o caminho da agroenergia com o mesmo garrote de subsídios e tarifas aplicados ao comércio de alimentos, os países ricos interditam uma possibilidade de renascimento agrícola para muitos países em desenvolvimento. Desnudam ademais uma transferência pura e simples de recursos públicos para preservar o privilégio de alguns poucos em detrimento de muitos.
São cada vez mais nítidos os limites desse modelo que sofre uma erosão de legitimidade entre os formadores de opinião dos próprios países ricos. O etanol de milho já abocanha 25% da safra norte-americana para oferecer em troca menos de 4% de substituição aos 520 bilhões de litros de gasolina consumidos no país. Este ano os EUA devem transferir US$ 8,5 bilhões em subsídios ao etanol. Em 2008 - quando se espera um aumento da produção, com a inauguração de novas usinas - serão US$ 11,5 bilhões e um salto para 66% do valor concedido por litro. Há mais de 70 usinas em construção nos EUA que devem dobrar a curto prazo a atual capacidade instalada. A demanda garantida pelo governo para 2012 - entenda-se, por garantida, subsídio - é pouco superior a cerca da metade da oferta esperada.
Não surpreende que o mercado comece a reagir e o faça ajustando duramente a rentabilidade das usinas. Depois de desfrutarem uma taxa de retorno de invejáveis 33% nos últimos anos, elas tiveram seu primeiro resultado negativo no mês passado. Pode ser um ponto fora da curva no horizonte imediato, mas não é isso que o sufoco estrutural dessa oferta sinaliza.
FAO fará conferência em julho de 2008 para definir marco regulador para mercado mundial de biocombustíveis
Talvez o álcool dos EUA tenha tropeçado precocemente na imagem shumpteriana de que os carros mais velozes necessitam ter os freios mais potentes. Se isso for verdade, está a caminho uma freada brusca de depuração. Tão brusca e intempestiva quanto a aceleração irrefletida da oferta nos últimos anos pela sedução dos subsídios.
O fato é que o etanol de milho é caro e ineficiente. Só a insistência num protecionismo irracional poupará essa trajetória de uma colisão frontal com a lei da oferta e da procura, justamente na trincheira mais aguerrida do livre mercado. Os EUA respondem por 70% das exportações mundiais de milho amarelo. Um deslocamento maciço dessa oferta para produção de etanol provocará distúrbios em nações que dependem da importação desse grão. É o caso do México e dos países da América Central, todos eles dependentes das importações de milho norte-americano, da ordem de US$ 1 bilhão por ano.
A dependência neste caso - é bom que se diga - não reflete a falta de terras ou de braços. Há espaço para compatibilizar a expansão da agroenergia para atender a demanda local por biocombustíveis, sem ameaçar o meio ambiente nem desalojar lavouras de alimentos, na maioria dos países latinoamericanos, inclusive no México e alguns dos países da América Central.
O elemento verdadeiramente escasso é uma política de segurança alimentar que incorpore o potencial agrícola a uma determinação de erradicar a fome numa região onde a pobreza extrema é majoritariamente rural. Essa lacuna não argüi apenas o futuro da agroenergia. Ela questiona o passado e o presente da agricultura regional, como demonstrou recentemente um grande empresário da agroindústria chilena. Em desabafo ao principal jornal de Santiago, admitiu que apesar do sucesso da fruticultura local, ainda se pagava "salários que não são admissíveis ética, social ou empresarialmente". Os salários agrícolas, disse, deveriam refletir o salto da produtividade já conquistado. Infelizmente isso não ocorre hoje nem no Chile, com suas exportações de frutas e legumes frescos, e muito menos no Brasil, onde 50% dos cortadores de cana ganham em média menos que o salário mínimo, segundo os últimos dados da Pnad.
A agroenergia pode oferecer nova oportunidade não apenas na América Latina, mas também em vários países do Caribe e da África. Três políticas são imprescindíveis para minimizar os riscos que trazem implícito: redução das barreiras comerciais ao etanol; assegurar a inclusão da agricultura familiar nessa nova cadeia produtiva; e implementar a certificação sócio-ambiental dos biocombustíveis de modo a assegurar que não signifique o sacrifício de bóias-frias, nem do meio ambiente.
Para dar a essa esperança de futuro sua pertinência no presente, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) realizará, em junho de 2008, uma grande conferência internacional da qual participará o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A meta é construir um marco regulador para o mercado internacional de biocombustíveis que libere seu potencial para reduzir a fome e a pobreza em países dotados de condições competitivas para produzi-los.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe. FONTE: Valor Econômico ? SP