Nelson G. Delgado
Depois do último encontro dos presidentes Lula e Bush, em 24 de setembro, em Nova York, a grande imprensa nacional anunciou que os dois presidentes teriam reafirmado sua disposição em retomar as negociações comerciais sobre agricultura da Rodada Doha da OMC, num encontro em que a "flexibilização" teria sido a "palavra-chave" (O Globo, 25 de setembro de 2007, p. 3). Será possível que os impasses venham a ser afinal superados pela "flexibilização" da posição dos principais players no contencioso agrícola mundial: os Estados Unidos e a União Européia, por um lado, e os países do G20, por outro? E para quê?
Simplificando o retrospecto, lembremos que, como resultado da Rodada Uruguai do GATT (1986-1994), tivemos a criação da OMC, o estabelecimento de um acordo sobre agricultura -louvado pelos economistas agrícolas dos países desenvolvidos como a bem-sucedida tentativa de finalmente "trazer a agricultura para dentro do GATT"- e uma nova polarização entre os países, que não mais os dividia em desenvolvidos ou subdesenvolvidos (ou "em desenvolvimento") mas em países favoráveis à liberalização do comércio agrícola mundial (Estados Unidos e Grupo de Cairns, no qual estava incluído o Brasil) e países defensores do protecionismo agrícola (entre os quais a atual União Européia e o Japão). A Rodada Uruguai deveria ser continuada através de outras rodadas da OMC, com o objetivo de aprofundar o processo de liberalização agrícola por meio de retificações das imperfeições que ainda subsistiam no Acordo sobre Agricultura.
O problema é que as "imperfeições" do Acordo favoreceram consideravelmente a manutenção das políticas agrícolas protecionistas dos Estados Unidos e da União Européia - o pacto feito em Blair House na Casa Branca foi decisivo para a conclusão do mesmo -, permitindo-lhes iludir ou contornar grande parte das exigências de liberalização incluídas nos três pilares do Acordo: redução do apoio doméstico, ampliação do acesso a mercados e eliminação dos subsídios às exportações.
A posição brasileira em relação à revisão do acordo agrícola esteve, durante a segunda metade dos anos 1990, plenamente associada à posição do Grupo de Cairns, cuja meta principal era (e continua sendo) a ampliação do acesso a mercados. Mantinha-se também em plena sintonia com os interesses do agronegócio brasileiro, cuja relevância política ampliou-se consideravelmente a partir do final dessa década, por sua crescente importância para a balança comercial do país, pelo competente trabalho de marketing (inclusive político) liderado pela ABAG e pela exposição extremamente favorável à opinião pública propiciada pela grande imprensa. Nesse período e em todo o Governo FHC, essa foi a agenda, em relação à agricultura, da política brasileira na OMC, o que a afastava do posicionamento de outros países em desenvolvimento historicamente importantes, como a Índia, com sua ênfase no tema do tratamento especial e diferenciado a esses países, com vistas à implementação de políticas domésticas de desenvolvimento e de segurança alimentar.
A grande mudança dessa posição brasileira ocorreu no período de preparação para a Conferência Ministerial da OMC em Cancun no México, em setembro de 2003, com a criação do grupo de países em desenvolvimento denominado G20 - incluindo países como África do Sul, Argentina, China, Brasil, Índia, Nigéria e Indonésia - o qual representa mais de 20% do PIB agrícola e mais de 65% da população rural mundiais. A criação do G20 significou uma novidade em tempos de globalização financeira e de restauração conservadora neoliberal como um exercício de construção - julgado por muitos impossível e, mesmo, desnecessário - de alguma unidade entre os países em desenvolvimento, tendo em vista propor alternativas de agenda para as negociações comerciais internacionais em agricultura.
Além disso, essa unidade foi construída na época com a utilização de uma retórica na qual a idéia de desenvolvimento e de "agenda de desenvolvimento de Doha" teve uma força legitimadora e reinvindicatória indiscutível. Na verdade, essa retórica mobilizou a idéia da possibilidade ou não do desenvolvimento para esses países no sistema econômico mundial e o reconhecimento explícito, no fórum da OMC, de que existem, de uma forma ou de outra, mas muito arraigados, interesses divergentes significativos entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, não obstante o esforço despendido para afirmar a sua inexistência, na grande maioria dos organismos internacionais, a partir da década de 1990. Nesse sentido, o G20 foi uma ousadia, além de ter estimulado a busca de um maior intercâmbio comercial entre os países do chamado Sul.
A alteração da posição negociadora brasileira e a iniciativa de criação do G20 estiveram associadas ao surgimento de alguns elementos indispensáveis: (1) a eleição do primeiro Governo Lula e a disposição política renovada do país, aliadas à disposição do novo governo de aproximar-se dos grandes países em desenvolvimento líderes regionais, contribuíram para a criação de um ambiente político favorável à decisão do Brasil liderar uma aliança de países em desenvolvimento para enfrentar as negociações comerciais em relação à agricultura na OMC; (2) o erro político grosseiro dos Estados Unidos e da União Européia ao apresentarem uma proposta conjunta para orientar as negociações agrícolas de caráter explicitamente anti-desenvolvimentista, numa rodada que se autodenominava "Rodada do Desenvolvimento"; (3) a imobilização política que a proposta norte-americana e européia provocou no Grupo de Cairns, incapaz de formular uma proposta alternativa; e (4) a decisão do Brasil e da Índia de iniciarem um diálogo para a construção de uma proposta alternativa - centrada na eliminação de todos os subsídios às exportações -que, flexibilizando suas posições anteriores, viabilizasse uma aliança dos países periféricos líderes regionais.
Consolidada a proposta do G20 e abortada a Conferência de Cancun, a continuidade do jogo político das grandes nações tentou inicialmente inviabilizar a unidade do G20, sem sucesso, passando a reconhecê-lo, então, como um player indispensável na arena de negociações da OMC. O período que vai até a Conferência de Hong Kong, em dezembro de 2005, foi gasto na busca de um texto de modalidades para a negociação agrícola, sem que se tenha conseguido alcançar algum acordo que rompesse o impasse estabelecido em Cancun. Nesse meio tempo, aumentou o ceticismo das ONGs e redes internacionais e dos blocos africanos e demais países em desenvolvimento em relação às intenções de mudança do G20, com destaque às concessões consideradas excessivas feitas aos países ricos ao longo do processo e com a contrapartida da participação privilegiada do Brasil e da Índia - junto com Estados Unidos, União Européia e Austrália - no FIPs (Grupo das Cinco Partes Interessadas), criado informalmente para facilitar a negociação de um acordo sobre modalidades.
De qualquer modo, a agenda do G20 para Hong Kong continuou a reafirmar a eliminação dos subsídios às exportações, embora a relevância da ampliação do acesso ao mercado tenha aumentado visivelmente, ao mesmo tempo em que se confirmou seu compromisso com produtos especiais e com os mecanismos especiais de salvaguarda, de interesse dos demais países em desenvolvimento.
A falta de acordo sobre um texto aceitável acerca das regras e procedimentos a serem seguidos na negociação agrícola na OMC manteve-se até agora, inviabilizando, assim, a sua retomada. Ao mesmo tempo, a grande imprensa continua a veicular repetidamente intenções manifestas pelos principais países e pelos organismos internacionais de chegar a uma solução, sem que ninguém, no entanto, se empenhe verdadeiramente para sua efetivação. Nesse contexto, é realista apostar que as intenções de flexibilidade anunciadas no último encontro entre os presidentes Lula e Bush representem mais do que outro exercício de retórica? Tudo indica que não.
Os próprios termos em que a questão das negociações é colocada - ao vincular desenvolvimento dos países em desenvolvimento com liberalização comercial agrícola - constitui-se num labirinto de difícil saída, pois parece significar que países como o Brasil devem concentrar todo seu esforço exportador na agricultura, sugerindo que para que os países desenvolvidos aceitem reduzir substancialmente o montante de seu protecionismo agrícola - e possamos sair, igualmente, do impasse negociador e do impasse desenvolvimentista -, devemos aceitar compensá-los através da abertura de nossos mercados para produtos industriais, serviços, compras governamentais etc. Foi essa equação extremamente simplificada do tema do desenvolvimento que a criação do G20 ajudou a complexificar. Seus termos podem ser muito convenientes aos interesses imediatistas do agronegócio, mas não parecem suficientes para sustentar o crescimento econômico e social continuado - com capacidade adequada de participação no comércio internacional - de um país com os problemas e a população do tamanho da brasileira, como o ex-deputado Delfim Netto chamou recentemente atenção ("A restrição externa", Carta Capital, 03/10/2007, p.32).
Por fim, embora a agenda negociadora brasileira continue refletindo basicamente os interesses do agronegócio, a posição adotada pelo primeiro Governo Lula, fortalecida pela existência do G20, conseguiu interromper negociações comerciais herdadas do governo anterior, cujos resultados poderiam ter sido muito danosos para o futuro do desenvolvimento brasileiro, como foi o caso da Alca e do Acordo Mercosul-União Européia. Ademais, a criação do G20 permitiu uma relativa abertura política da agenda das negociações comerciais agrícolas, com a consideração, mesmo que predominantemente defensiva, de temas como desenvolvimento rural e interesses da agricultura familiar. Essa abertura viabilizou uma importante experiência política de mobilização de organizações e de movimentos de agricultores familiares, de ONGs e do ministro e de técnicos do MDA, que tiveram reconhecida participação nas negociações da OMC em Cancun, da Alca e do Acordo Mercosul-União Européia. Além do aprendizado que essa experiência trouxe para seus participantes, ela também representou uma ampliação das arenas de discussão e de decisão da política pública para a agricultura familiar e de dilatação da esfera pública acessível a seus representantes. Esperemos que o atual diz-que-diz acerca da retomada das negociações da Rodada Doha seja encarada pelo MDA como uma oportunidade de dar continuidade, no segundo Governo Lula, à tentativa de levar a disputa política entre diferentes modelos de desenvolvimento rural para o campo das negociações comerciais internacionais.
Professor do CPDA/UFRRJ. FONTE: Agência Carta Maior