A ligação entre a pobreza e a privação de direitos continua à margem dos debates de políticas e da criação de estratégias
NO DIA 10 de dezembro, será lançada uma campanha de um ano de duração em comemoração aos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A campanha oferece aos países e a todos os atores sociais a oportunidade de participar, com vigor renovado, da luta contra a pobreza -ainda um dos maiores desafios para todos.
Eleanor Roosevelt, que liderou o processo de criação da declaração, observou que "nenhuma liberdade pessoal pode existir se não houver segurança econômica e independência". Pessoas que enfrentam necessidades não são livres.
A pobreza é tanto causa como conseqüência de violações de direitos humanos. Mas a ligação entre a pobreza e a privação de direitos continua à margem dos debates de políticas e do desenvolvimento de estratégias. Isso apesar do fato de que já existem bases e plataformas legais que guiam as ações dos países nesse sentido.
Todos os países já ratificaram pelo menos 1 dos 9 tratados de direitos humanos e 80% ratificaram pelo menos quatro. Além disso, a comunidade mundial endossou os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), que definem metas concretas em relação aos esforços internacionais para acabar com a pobreza e a marginalização até 2015.
Porém, como conseqüência da falta de vontade política e, em alguns casos, de recursos -bem como a ausência de melhor compreensão da relação entre pobreza e abuso-, o quadro global que emergiu neste ano está, talvez previsivelmente, longe de ser reconfortante.
O progresso em algumas áreas do mundo não significa que os governos estejam honrando os compromissos que assumiram anteriormente. Assim, direitos humanos fundamentais continuam sendo desrespeitados. De fato, uma visão amplamente apoiada sustenta que os direitos humanos não são prioridade para quem luta, dia-a-dia, para sobreviver. Esses direitos seriam um luxo que somente os mais ricos poderiam se permitir.
Contudo, uma coisa é certa: todos os direitos humanos -o direito a expressão, ao voto, assim como os direitos à alimentação, ao trabalho, à saúde e à habitação- são importantes para os mais pobres porque a destituição e a exclusão estão mescladas à discriminação, ao acesso desigual a recursos e oportunidades e ao estigma social e cultural. Isso torna mais difícil sua participação no mercado de trabalho e o acesso a recursos e serviços básicos.
Em muitas sociedades, os mais pobres não podem usufruir dos direitos à educação, à saúde e à habitação simplesmente porque não podem se permitir isso. Tal fato acaba dificultando sua participação na vida pública e sua capacidade de influenciar as políticas.
Para resumir, a pobreza significa não somente salários e bens insuficientes mas também falta de oportunidades e de segurança que minam a dignidade e aumentam a vulnerabilidade dos mais pobres. A pobreza é também uma questão de poder: quem o detém e quem não o detém. Entretanto, a pobreza é normalmente percebida como uma condição lamentável, mas acidental, ou como conseqüência inevitável de decisões e eventos ocorridos em outro lugar -ou, ainda, como responsabilidade daqueles que sofrem com ela.
Uma aproximação mais compreensiva dos direitos humanos não irá só discutir impressões equivocadas e mitos que rodeiam os mais pobres, irá também ajudar a achar meios sustentáveis e justos para o fim da pobreza. Reconhecendo as obrigações explícitas dos Estados de proteger suas populações contra a pobreza e a exclusão, essa visão enfatiza a responsabilidade em direção a um ambiente de bem-estar público. Isso permite que os mais pobres ajudem a dar forma às políticas de concretização de seus direitos e procurem corrigir abusos.
Independentemente de problemas econômicos, os países podem tomar medidas imediatas para lutar contra a pobreza. Atacando a discriminação, por exemplo, removem-se barreiras da participação no mercado de trabalho e dá-se às mulheres e às minorias maior acesso a empregos.
Programas como os adotados no Brasil, o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, representam importantes exemplos de como políticas corretas podem agir em favor dos mais pobres. Vencer a pobreza é um compromisso de longo prazo, no Brasil como nos outros países. Isso requererá juntar os esforços dos governos, assim como os da sociedade civil e do setor privado.
Enquanto 1 em cada 7 pessoas do mundo continuar sofrendo com a fome todos os dias, proteger e dar poder aos mais pobres deve se tornar um motivo urgente para honrar o espírito e a promessa de dignidade para todos contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
LOUISE ARBOUR, 60, formada em direito na Universidade de Montreal (Canadá), doutora honoris causa de 27 universidades, é a alta comissária para os Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas). FONTE: Folha de São Paulo ? SP