O Estado de São Paulo desapropriou o local onde está hoje o Parque Villa-Lobos, na zona oeste da capital paulista, por R$ 400 milhões, incluindo o valor do terreno, correção monetária e juros legais. Mas o precatório de indenização emitido pelo Judiciário paulista saiu por R$ 2 bilhões. O mesmo ocorreu com o famoso precatório referente à indenização pela desapropriação do local onde está o Parque Estadual da Serra do Mar, que saltou de R$ 700 milhões para R$ 1,4 bilhão depois de passar pelos tribunais. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sofre problema semelhante e precisa pagar todo ano entre 55% e 65% a mais pelas propriedades desapropriadas - em 2006 este sobrepreço custou R$ 116 milhões aos cofres do instituto. Tanto no Incra como em São Paulo, ou em qualquer outro lugar do país, o problema é o mesmo: a incidência de juros compensatórios de 12% ao ano sobre as indenizações por desapropriações, sejam elas feitas para projetos de infra-estrutura, obras urbanas, criação de áreas de preservação ambiental ou reforma agrária.
Apesar de nunca terem sido fixados em lei, os juros compensatórios estão previstos desde 1984 pela Súmula nº 618 do Supremo Tribunal Federal (STF). A previsão sobreviveu ilesa a vários ataques jurídicos e legislativos do governo federal, mas recentemente ano a Advocacia-Geral da União (AGU) e a procuradoria do Incra identificaram uma nova arma para combater o encargo: a Lei nº 11.417, de 2006, que regulamentou a súmula vinculante. Ela trouxe uma previsão até então inédita, que é o pedido de revisão de súmula. Os técnicos da AGU e do Incra acreditam que, ainda que a lei trate da súmula vinculante, nada impede que a ferramenta seja aplicada a uma súmula comum, como é a 618.
Pela estratégia avaliada na AGU, um pedido de revisão retiraria as contestações da União da vala comum dos pedidos repetitivos no Supremo e obrigaria a corte a se debruçar adequadamente sobre o tema. Hoje, o caso é resolvido pela mera aplicação da jurisprudência consolidada há 23 anos no Supremo, e em precedentes que remontam à década de 70. O encargo já foi alvo de uma medida provisória editada durante o governo Fernando Henrique Cardoso e na CPI dos precatórios tentou-se até encaminhar uma emenda constitucional para derrubar a previsão. A edição do novo Código Civil de 2002, que alterou toda a legislação sobre pagamento de juros em desapropriações, também não alterou a aplicação da súmula no Supremo.
Segundo o procurador-geral do Incra, Valdez Farias, os procuradores da autarquia sempre questionam a aplicação da súmula, mas até hoje nenhum pedido teve sucesso. A única esperança restante no Supremo seria uma reversão no julgamento em curso da Medida Provisória nº 2.027, de 2000, que limitou os juros compensatórios em 6% e restringiu os casos em que ele poderia ser concedido. Mas a medida provisória foi suspensa liminarmente pelo Supremo ainda em 2001.
O procurador da república Antônio Fonseca estuda o tema desde os anos 80 e em 2005 produziu um estudo de quase 400 páginas com o único objetivo acabar com a cobrança dos juros compensatórios - pelo menos da forma como ela existe hoje. Para ele, a melhor saída para o problema seria a revogação da Súmula nº 618. De acordo com o procurador, o Supremo formulou sua posição em um contexto bem diferente do atual, durante o período militar, em que o governo jogava o preço dos imóveis desapropriados para baixo propositalmente, e a inflação de três dígitos consumia ainda mais o valor das indenizações. Hoje, no entanto, a posição à época adotada para proteger os proprietários rurais dos abusos do poder público acabou se transformando em uma brecha para o enriquecimento sem causa. Se no passado uma ação de desapropriação era uma tragédia para um fazendeiro, hoje é recebida com festa. Houve até um célebre caso ocorrido no Pará há alguns anos em que um proprietário pagou a um grupo de sem-terras para que invadissem sua propriedade.
Segundo o procurador, os juros compensatórios - também chamados juros de dano - existem para remunerar algum tipo de perda financeira da desapropriação, como a valorização futura do terreno ou a rentabilidade obtida com o uso do imóvel. Mas de acordo com Valdez Farias, do Incra, no caso das desapropriações para reforma agrária a remuneração não faz sentido, porque as fazendas são improdutivas e a remuneração paga pela autarquia - TR mais 6% ao ano - já supera a valorização da maioria das propriedades. No caso das desapropriações urbanas, diz, o pagamento dos compensatórios pode fazer sentido em alguns casos, como na desapropriação de imóveis comerciais, que produzem renda. Ele observa que todos os precedentes que geraram a Súmula nº 618 tratam de propriedades urbanas, e não rurais.
De acordo com José Roberto de Moraes, procurador do Estado de São Paulo, a remuneração foi fixada em 12% na súmula porque era este o valor que se atribuía à valorização imobiliária urbana, mas o contexto era diferente. Em meio à inflação alta, o percentual de 12% era até baixo. Ele acredita que a melhor saída para o tema é uma reforma legislativa que determine que os juros compensatórios devam ser fixados por peritos, que podem determinar quanto a propriedade irá se valorizar.
Segundo José Roberto, além do governo do Estado, os municípios também sofrem com o problema. Ele diz que em uma reunião encontrou procuradores de vários municípios com problemas semelhantes. A prefeitura de Angra dos Reis, conta, desapropriou uma casa para montar um centro cultural, mas os juros elevaram o valor do imóvel a ponto de representar algo como metade do orçamento anual da cidade. A prefeitura desistiu do projeto e devolveu o imóvel, mas não se livrou do pagamento dos compensatórios: precisa pagar 70% do valor da casa, mas não ficará com ela. FONTE: Valor Econômico ? SP