OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Cidades Mortas", de Monteiro Lobato, e "Utopias Agrárias", de vários autores, têm uma conexão possível: aquele ponto impreciso em que o fim de um sonho se confunde com o início do seguinte. Nas crônicas publicadas há 90 anos e agora reeditadas, Monteiro Lobato (1882-1948) retrata a decadência da cultura do café no Vale do Paraíba, em São Paulo.
O tom é de sátira social. Um personagem, poeta, obtém o cargo de inspetor agrícola após declarar ter cultivado apenas "batatas gramaticais". Outro, ao negar um empréstimo, alega querer preservar a amizade, já que tem menos amigos do que patacas.
Essa comicidade, ainda eficaz, apesar da dicção lusa, pré-modernista, é temperada pela melancolia, que aparece em histórias como a do proprietário que, com a vã esperança depositada no café, vai vendendo nesgas da fazenda, "pedaços da sua própria carne".
A intenção de Lobato transparece já no nome de um de seus vilarejos fictícios: Oblivion, que, em inglês, quer dizer esquecimento.
"Desviou-se dela a civilização", resume o autor. Oblivion seria o avesso de Utopia. Enquanto a vila de Lobato remete para o estertor uma época, a ilha igualmente fictícia de Thomas More (1477-1535) sugere o limiar de uma era.
O neologismo do humanista inglês é o ponto de partida de "Utopias Agrárias", uma reunião de artigos apresentados num seminário da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2006. No texto de abertura, o cientista político Marcelo Jasmin dissocia a utopia de ideais quiméricos. Nota que a palavra carrega, em português, um sentido de "fantasia", enquanto a definição em francês contempla a plausibilidade da imaginação. "O horizonte de expectativas do que é plausível se move com os sujeitos da história, e o que ontem parecia desatino hoje pode ser o próprio senso comum." O resgate semântico da utopia é recorrente em vários autores. Para o doutor em filosofia Carlos Antônio Leite Brandão, a utopia empreende uma suspensão da racionalidade em vigor que dá lugar a uma outra ordem de valores, "ainda não vigentes, mas em formação".
Aplicado ao universo agrário, esse conceito revalorizado de utopia qualifica reformas que visam o acesso à terra. Segundo o sociólogo Leonardo Avritzer, a ampliação da propriedade da terra é nada menos do que pré-condição para a extensão da cidadania urbana.
Há entre os autores predominância de perspectivas de esquerda -o que não exclui críticas ao marxismo, por ter rebaixado o status da utopia- e não por acaso o volume termina com um depoimento de Manoel da Conceição Santos, líder do Movimento de Libertação dos Sem Terra, uma dissidência radical do MST. "Na minha utopia agrária de hoje, a terra não deve ter dono, nem pequeno nem grande."
O alvo do comentário utópico-socialista de Mané, como ele prefere ser chamado, são seus antigos companheiros de luta que hoje querem ser capitalistas. "Tem companheiro assentado da reforma agrária que já quer ir para outro Estado, porque o gado não cabe mais na terra dele."
A menção a um projeto comunista suscita o debate sobre os limites da democracia como regime capaz de promover e de beneficiar-se de uma reforma agrária. Esse é o tema de Newton Bignotto (UFMG), autor de "Origens do Republicanismo Moderno".
Citando Alexis de Tocqueville, para quem o ideal democrático é a perfeita coincidência entre igualdade e liberdade, ele afirma que a luta pela terra é condição necessária, embora não suficiente, para a implementação de uma democracia efetiva no Brasil. É uma advertência à direita.
Mas ele também adverte a esquerda: "A busca pela igualdade a todo preço pode conter os germes da destruição das sociedades democráticas". São limites para a reforma agrária, mas, entre um extremo e outro, há espaço de sobra para que Utopia não repita Oblivion.
OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, editado pela Publifolha).
CIDADES MORTAS
Autor: Monteiro Lobato
Editora: Globo
(tel. 0/xx/ 11/ 3714-2920)
Quanto: R$ 28 (200 págs.)
UTOPIAS AGRÁRIAS
Organizadores: Heloísa Maria Murgel Starling, Henrique Estrada Rodrigues e Marcella Telles
Editora: UFMG
Quanto: R$ 42 (376 págs.) FONTE: Folha de São Paulo ? SP