Com a alta acentuada nos preços mundiais dos alimentos, vale lembrar que o "novo" debate sobre etanol versus comida é, na verdade, um debate muito "velho" sobre a cana-de-açúcar versus safras de subsistência. E essa é uma polêmica com antecedentes consideráveis no Brasil. A questão sempre ocupou os pensamentos dos governantes coloniais do Brasil. Para eles, estava conectada ao risco de inquietações sociais. A prosperidade nos setores de exportação muitas vezes gerava escassez e preços altos para a comida no mercado interno, especialmente no caso dos consumidores urbanos. Com base nessa experiência, os governos temiam fome e desordem.
A questão se tornou aguda na década final do regime colonial. Nos anos 1790, um grande levante de escravos aconteceu na colônia caribenha francesa conhecida então como Saint Domingue -e hoje como Haiti. A produção colonial francesa de açúcar, que dominava os mercados mundiais, foi destruída. Em conseqüência, o açúcar brasileiro voltou a atrair forte demanda internacional.
Os plantadores de cana-de-açúcar da Bahia se beneficiaram dessa alta de preços e da demanda internacional. O bispo Azeredo Coutinho, ex-senhor de engenho tornado prelado e economista, argumentou, em "Memória sobre o Preço do Açúcar", publicado em 1791, que os brasileiros deveriam tirar a máxima vantagem da "providencial revolução" na colônia francesa. Ele recomendou que todas as restrições à produção de açúcar fossem removidas.
As "restrições" que o bispo deplorava eram as leis coloniais que obrigavam os agricultores a cultivar safras de subsistência, como a mandioca. Sem essas restrições legais, eles poderiam explorar todas as suas terras para a produção de cana a fim de aproveitar a elevação no preço do açúcar. Era exatamente isso, de fato, que vinham fazendo ao longo da década de 1790. Como resultado, o preço da mandioca triplicou em quatro anos. Luis dos Santos Vilhena, professor de grego em Salvador, condenou o bispo por suas idéias "européias", as quais, alegava, não levavam em conta as condições locais do Brasil colônia, no qual a oferta de alimentos não era elástica. Mas os agricultores não aceitavam a crítica. Manuel Ferreira da Câmara escreveu que as medidas de proteção à agricultura de subsistência se deviam à "piedade e ao zelo mais religioso que político".
Uma velha discussão, portanto, mas com uma reviravolta tipicamente brasileira: no Brasil do final da era colonial, era um bispo que defendia os agricultores e o mercado livre, enquanto um professor de grego argumentava pela caridade cristã e em defesa dos pobres.
* Kenneth Maxwell escreve às quintas-feiras nesta coluna. Tradução de PAULO MIGLIACCI FONTE: Folha de São Paulo - 15/05/2008