Antonio Delfim Netto
É plenamente justificada a indignação do presidente Lula com a sórdida campanha européia e da ONU (que tem o mais nobre objetivo e a mais indecente performance para atingi-lo) contra os biocombustíveis e, em particular, contra o etanol brasileiro. Trata-se da mais pura chicana política. Vereadores de arraial, disfarçados de estadistas, defendem os mais inconfessáveis interesses econômicos com o falso argumento que eles irão produzir a fome no mundo. Chicana, em primeiro lugar, porque a Europa criou o biodiesel (de colza) e, de fato, é a maior produtora mundial do produto. E, em segundo lugar, porque o Brasil tem aumentado, simultaneamente, a produção de alimentos e de cana-de-açúcar, como se vê abaixo:
A safra de grãos 2007/08 revela aumento de 7,1% com pequeno crescimento de área plantada (1,6%) e 5,5% de aumento da produtividade. Ao mesmo tempo cresceu a produção de cana-de-açúcar em 8,3%. Com relação à cana, convém lembrar que a área média renovada anualmente (com o plantio de alimentos) é da ordem de 13%. No setor sucroalcooleiro, duas observações são importantes: 1) com o aumento da colheita mecanizada há uma enorme redução do uso da mão-de-obra na atividade (grosseiramente, para cada tonelada de cana colhida mecanicamente, dispensa-se um colhedor). Em São Paulo, por exemplo, onde a mecanização está em torno de 45%, estima-se que a colheita da produção da ordem de 350 milhões de toneladas (contra 320 na safra 2006/07) exigirá praticamente a mesma mão-de-obra da safra anterior. Se a mecanização fosse maior, haveria dispensa de mão-de-obra. O cronograma fixado em lei é atingir 100% de área mecanizável em 2021 e 100% de área "não-mecanizável" (queima em área menor do que 150 hectares ou declividade maior do que 12%) em 2031; e 2) produzimos hoje um litro de etanol com 1/3 da terra exigida há 25 anos (devido aos ganhos tecnológicos).
Vemos que, graças às pesquisas que realizou, o Brasil criou uma eficiente agricultura tropical que deixa longe o fantasma malthusiano: produzimos mais, com menos terra e menos mão-de-obra! O mesmo acontece, aliás, no setor da pecuária de carne (onde somos o primeiro exportador mundial) e de leite (onde em breve assumiremos um importante papel no mercado internacional).
Se isso não fosse suficiente para mostrar a tolice de atribuir ao etanol brasileiro uma redução da produção de alimentos, bastaria lembrar que, dos seus 850 milhões de hectares, o Brasil tem (com a tecnologia hoje existente) cerca de 350 milhões de terras agricultáveis, dos quais apenas 8 milhões (ou seja menos de 2,5%) estão ocupados com cana-de-açúcar. A pecuária ocupa 60% da área, mas a disponibilidade de pastos degradados que estão sendo liberados pelo avanço da tecnologia na produção da carne e de lácteos garante que podemos dobrar (ou mesmo triplicar) a produção de etanol sem derrubar uma árvore! O mesmo acontece com a cultura de grãos, que ocupa menos de 75% das terras próprias para sua produção.
Campanha da Europa e ONU é pura chicana política
O que está acontecendo no mundo deveria ser objeto de nossa reflexão. Deve ser agora evidente, para os ingênuos que defendem o livre-comércio "à outrance" por pura "bobice" ideológica, que os interesses nacionais não terminam nas "vantagens comparativas". Toda nação busca a autonomia alimentar, de forma que o comércio de alimentos será sempre um complemento da produção interna. Que falta lhes faz a história!
Como foi possível chegar a essa situação caótica onde a fome ameaça o mundo? Situação que não foi prevista ou intuída pela suposta "inteligência política e econômica" que sustentamos na ONU, na FAO, na OMC, no FMI, no Banco Mundial e "tutti quanti"? Quando e como nasceu isso? No fim da Segunda Guerra Mundial, a necessária autonomia alimentar mostrou a sua cara. Todos os países a procuraram através do suporte às suas políticas agrícolas. Quarenta anos depois, a Europa não sabia o que fazer com seus estoques produzidos por subsídios e "cotas" (alguém se lembra da "manteiga" e do "leite em pó"?), que protegeram uma agricultura ineficiente à custa de impedir as importações dos emergentes e, portanto, sem induzi-los a realizarem seu desenvolvimento com o aumento da produção para a exportação.
E o que emergiu agora em plena negociação da Rodada Doha? O fantasma da fome e a busca da autonomia alimentar! Tomados de pânico, os países trataram de defender-se proibindo temporariamente as exportações. Pior, vários países estão desenvolvendo outra vez programas subsidiados e protegidos por "cotas" de importação de alimentos: a Rússia com a carne de porco, China e a Índia com os grãos, Irlanda com a carne de boi, a insensata (do nosso ponto de vista) defesa francesa da Política Agrícola Comum (CAP) e a "Farm Bill" aprovada pelo Congresso dos EUA.
Os preços agrícolas estão subindo por muitos motivos: 1) o mais importante talvez seja a desvalorização da unidade de conta do comércio internacional, o dólar; 2) pela redução dos estoques (recomendação da própria OMC), porque com a "liberdade de comércio" eles seriam dispensáveis!; e 3) pela especulação desenfreada dos "hedges funds". O que restará disso? Primeiro, grandes conversas diplomáticas, lítero-musicais nos foros internacionais. Segundo, concretamente e por "baixo do pano", cada um vai buscar sua independência alimentar...
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento FONTE: Valor Econômico - 13/05/2008