José Maria Tomazela
Em 17 anos no Assentamento Bela Vista do Chibarro, em Araraquara, a 275 quilômetros de São Paulo, o agricultor Jamil França, de 64 anos, e sua mulher, Valdeci Vieira França, de 58, adquiriram um patrimônio invejável: trator, implementos, automóvel, plantel de gado de leite e uma ampla casa de alvenaria avaliada em R$ 100 mil.
O casal poderia ser apresentado como prova de que o dinheiro público investido na reforma agrária não está sendo jogado fora. Exceto por um detalhe: a prosperidade dos França se deve à cana-de-açúcar plantada em parceria com a Usina Zanin, prática que a superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) quer abolir dos assentamentos paulistas.
Em dezembro, com um mandado judicial, funcionários do órgão foram até o lote de 20 hectares de Jamil e Valdeci e mandaram que retirassem os bens pessoais e abandonassem o local. Ao todo, 11 das 151 famílias assentadas foram expulsas.
O Incra diz que a relação dos assentados com a Zanin é de arrendamento. O lotista não tem controle sobre a produção e, na prática, apenas cede as terras para lavouras da usina. Segundo o órgão, a função dos assentamentos da reforma agrária, prevista no Estatuto da Terra, é fortalecer a agricultura familiar e produzir alimentos. A cana, caracterizada como monocultura, não atenderia a esse objetivo e tornaria os agricultores dependentes dos usineiros.
Se o Incra usasse o mesmo rigor com todos os assentados, o Bela Vista estaria praticamente vazio. A cana é largamente cultivada em 90% dos lotes.
A invasão ocorre também em assentamentos de outras regiões canavieiras, como Araçatuba, Ribeirão Preto, Barretos e Andradina. Em Rosana, Pontal do Paranapanema, 170 assentados da Gleba XV mantêm parceria para plantio e fornecimento da cana à usina Alcídia, com aval do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que administra 168 assentamentos, com 10,1 mil famílias.
Visto do alto, o assentamento Bela Vista do Chibarro, de 3,4 mil hectares, parece um grande canavial. A Zanin, vizinha do assentamento, fornece todos os insumos e os lotistas entram com a mão-de-obra. "Aqui, foi a cana que salvou o assentamento", diz o agricultor Germano Rodrigues, de 80 anos, ameaçado de despejo pelo Incra. "Plantei milho, não deu certo, o feijão perdi, o arroz deu prejuízo." Ele lembra que, quando acampou na região, há 22 anos, a área toda já era só de cana. "Foi com ela que começamos a ver alguma prosperidade. Que mal há nisso? Tínhamos que passar a vida toda num barraco?"
João Domingues dos Santos, de 43 anos, foi um dos expulsos e teve sua casa foi derrubada. Como ele e a mulher, Maria Aparecida, se negaram a retirar os pertences, o pessoal do Incra carregou num caminhão e colocou no barracão. Além de plantar cana, o casal foi acusado de repassar irregularmente o lote para um irmão de Aparecida.
Aires Pedro dos Santos, de 49 anos, plantou 6 alqueires de cana e caiu em desgraça. "Meteram a grade em tudo e queriam enfiar outra família na casa que construí tijolo por tijolo." Santos diz que o Incra deu a opção de dividir o lote com outra família. "Como eu podia aceitar? Tudo aqui é meu suor." Segundo ele, os projetos do Incra, de pecuária de leite e de criação de bicho da seda, fracassaram. "Foi dinheiro jogado fora."
A ex-assentada Luciane Cristina Bueno, de 24 anos, também diz que os funcionários do Incra pressionam os assentados para aceitar a divisão de cada lote em dois. Numa das metades seria colocada outra família. Luciane é uma das líderes dos assentados expulsos. O grupo, revoltado, decidiu tirar "na marra" os novos assentados, em 30 de dezembro. Houve confronto e dez pessoas ficaram feridas.
A idade não permitiu ao assentado João Lessa, de 88 anos, estar com os excluídos. "Não foi por falta de raiva", diz, reclamando que um funcionário do Incra o destratou. "Disse que aqui nada é meu, que me toca pra fora a hora que quiser." Lessa planta cana, mas também planta milho, banana, abóbora, batata-doce, frutas. Seu erro foi plantar alguns pés de milho numa clareira da mata. Foi acusado de invadir a área de reserva. "Nunca fiz nada errado e fui tratado como criminoso."
O agricultor Elias Mendes de Souza, de 55 anos, resistiu à cana o quanto pôde. Plantou milho, arroz, feijão e, com sacrifício, comprou uma máquina de beneficiar arroz. "Aí o arroz arruinou e o pessoal foi para a cana." Por insistência do filho Lindomar, de 24 anos, Elias plantou 13 hectares de cana. Agora, teme perder o lote.
REFORMULAÇÃO
O Incra de São Paulo informou, em nota, que dará continuidade ao Plano de Recuperação do Bela Vista do Chibarro. Os assentados que quiserem regularizar a situação devem comparecer ao Núcleo de Apoio de Araraquara, a partir da segunda-feira. "O objetivo é adequar a exploração dos lotes aos parâmetros da agricultura familiar, possibilitando o desenvolvimento socioeconômico das famílias por meio da diversificação da produção", diz na nota.
Sobre as expulsões, o Incra explicou que em 10 de dezembro foram cumpridos os mandados judiciais de reintegração de posse de 9 lotes, além de uma ocupação em área de reserva e uma casa na área comunitária do assentamento. Logo após a retirada dos ocupantes irregulares, foram assentadas 17 famílias selecionadas pelos critérios previstos na lei sobre os assentamentos da reforma agrária.
O Incra esclareceu que, antes de recorrer à Justiça Federal, buscou por quase quatro anos a negociação, tentando sanear as irregularidades. Isso possibilitou a regularização de 14 famílias, que passaram a integrar o processo de desenvolvimento do assentamento juntamente com outras 130 famílias regularmente assentadas.
Segundo a nota, o arrendamento para a usina de cana não foi a única irregularidade encontrada. Foi constatada a aquisição ilegal de lotes por meio de compra e venda, a ocupação em áreas de reserva legal e preservação permanente e a construção irregular em área comunitária e em área de reserva legal. FONTE: Estado de São Paulo ? SP