Um é o representante-mor da elite sindical, tendo galgado ao posto de presidente da República depois de renunciar a algumas das bandeiras que hasteara quando líder da oposição. O outro, imbuído de uma profunda espiritualidade, representa a ala mais à esquerda da Igreja Católica, verbalizando as posições da Teologia da Libertação e das pastorais, em particular a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e do Conselho Indigenista Missionária (Cimi). Um passou a atuar como governante, invocando razões de Estado, a propósito de uma decisão que lhe é própria, a transposição do Rio São Francisco. O outro considera o mesmo rio um dom de Deus, expressão de Sua vontade.
Dois universos muito distintos se enfrentaram nesta batalha, que se apresentou como uma luta de vida e morte, com um dos contendores se entregando totalmente a um desenlace que poderia ter sido fatal. Dois universos que são extremamente representativos dos dilemas e impasses da sociedade brasileira e, muito particularmente, das condições que propiciaram ao PT chegar ao poder. Num passado muito recente, os dois Luízes não expressavam posições tão antagônicas, mas comungavam os mesmos princípios ou, ao menos, aparentavam fazê-lo. O representante das elites sindicais venceu as eleições com o apoio do outro Luiz, o dos auto-intitulados movimentos sociais, do MST e das pastorais, como se todos estivessem, enfim, a caminho da redenção. Tudo indica, porém, que os dois Luízes não compreendiam, da mesma maneira, o significado da redenção.
Dom Luiz, o do São Francisco, identifica a sua causa "terrena", a de um rio, com um dogma cristão. É como se, para ele, o dogma da eucaristia, relativo à presença do Cristo, tivesse o mesmo valor do da presença de Deus na disposição atual daquele rio. Em linguagem dos cantos da Comissão Pastoral da Terra, trata-se da Mãe-Terra que estaria sendo violada. Ele identifica o seu profundo despojamento com a luta dos ditos movimentos sociais, como se o seu exemplo moral fosse o dos mártires da Igreja, que tantos ganhos conquistaram nos períodos de ascensão e consolidação do cristianismo. Engana-se quem procura pensá-lo sob a ótica de um ato de suicídio. Na representação que tem de si mesmo, essa categoria não se aplica, pois ele se vê como cumprindo uma missão de fundo essencialmente religioso. Encarna ainda essa idéia do ponto de vista de sua retidão pessoal, diante de um mundo político que dá mostras de corrupção e desvio crescente de recursos públicos, inclusive por parte daqueles que o representavam politicamente. Exige do Estado que se curve diante dele, como se coubesse à Igreja ditar o que deve ser feito.
Dom Luiz, o dos sindicatos, expressão de uma nova forma de poder, está identificado com suas funções de governante. Sabe que não se pode curvar diante de tal postura religiosa, sob pena de renunciar ao seu próprio governo. O Estado não pode ficar a reboque da Igreja. Sabe ele também que a sua atuação segue regras administrativas, segundo as leis e diretrizes que regem uma República, baseada na divisão e separação dos Poderes. Na sua perspectiva, a transposição do Rio São Francisco é tecnicamente perfeita, tendo seguido todos os trâmites ambientais, orçamentários e jurídicos para a sua realização. Não tem por que tudo parar, tornando-se tributário de um indivíduo que se arvora em representante de uma "causa" religiosa. O Luiz que se tornou presidente não está somente preocupado com a seca sob a ótica da auto-subsistência dessas populações, o que poderia ser resolvido com cisternas. De fato, ele está, enquanto governante, preocupado com o crescimento econômico e o desenvolvimento social dessas regiões, via emprego, renda e salários, o que passa pelo apoio ao agronegócio e às empresas hidrelétricas. O outro Luiz, ao vislumbrar isto, sente tremores, pois seus dogmas teológico-políticos se vêem profundamente abalados.
Será que se distanciaram tanto? O nome Luiz passou a nomear universos tão diferentes, depois de terem sido a expressão do mesmo?
Montou-se uma cena de separação entre os dois Luízes, como se ela fosse inelutável. Nenhum reconhecimento se faria mais possível. O confronto entre ambos tornou-se uma luta de vida e morte, em que poderia haver um só vencedor. Num determinado momento, parecia que nenhum dos dois se renderia. Um, ao pôr sua vida física em questão, sabia que a sua morte implicaria uma outra, a morte simbólica do seu contendor. Em sua morte física, sobreviveria na mente e no coração de seus seguidores, discípulos e apoiadores. Tornar-se-ia o novo mártir dos "movimentos sociais", da "nova Igreja". O outro, em sua vida governamental, morreria simbolicamente para os mesmos "movimentos sociais" e para os seus militantes, que, até recentemente, o consideravam um ídolo, um "companheiro".
Luiz, o governante, tudo arriscou, colocando-se como chefe de Estado. Chegou a pedir "juízo" ao seu adversário. Enviou uma clara mensagem aos movimentos sociais e a essa ala da Igreja: não cederia. Assumiu o risco de sua morte simbólica. O outro Luiz, candidato a mártir, renunciou à sua candidatura. Chegou a anunciar que iria para o desenlace final, mas terminou recuando diante da morte. Hegel, na Fenomenologia do Espírito, no capítulo sobre a dialética do senhor e do escravo, escrevia que o senhor é aquele que vence a luta de vida e morte; o escravo, aquele que recua com medo da morte. Não há aqui nenhuma consideração de ordem social, moral ou oriunda da tradição, mas apenas o modo de encarar a morte numa relação de enfrentamento. Os ditos movimentos sociais também recuaram, como se temessem a morte simbólica de Lula, com quem contam para o prosseguimento de suas ações. Tiveram medo de um desenlace que os colocaria numa posição de isolamento em relação a um governo que, por outros meios, tanto os apóia. Dom Luiz, o Lula, soube se tornar senhor.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br FONTE: Estado de São Paulo ? SP