"Estou aqui de teimoso. Minha mãe até insistiu para eu ficar, mas vim assim mesmo", diz Deiverson Gomes, com os olhos baixos. Dezoito anos, jeito de menino, primeiro grau completo, Deiverson saiu da região do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas, para o sudoeste de Goiás atrás de emprego. "Nunca tinha saído de casa antes. Vim com meus amigos. Quero voltar logo".
Deiverson faz parte de uma leva de migrantes, recrutados por várias usinas do centro-sul do país para trabalhar nos novos canaviais que se formam no Centro-Oeste. "Nem sabia para que servia a cana", diz. Ele não é o único. Deiverson é amigo de Rafael Ferreira, 18 anos, que é amigo de Edmar Pires, 23. Os três mosqueteiros do Vale do Jequitinhonha, um dos maiores celeiros de bóias-frias do país, trabalham no mesmo talhão de cana na região de Jataí. Dividem os mesmos gostos musicais e a preferência por óculos escuros. Com exceção de Edmar, nunca tinham pisado em um canavial.
O sudoeste de Goiás virou um ímã para o setor sucroalcooleiro e atrai migrantes de todo país. Dos mais de 80 projetos de novas usinas protocolados no Estado, quase metade é para esta região, com terras de pastagens disponíveis e mais baratas que São Paulo. As cidades de Jataí, Mineiros e Caçu, distante cerca de 120 quilômetros uma das outras, somam aportes de R$ 2,5 bilhões em projetos em andamento, tocados pelos grupos Brenco, Cosan e ETH Bionergia, do Odebrecht.
Com tradição em grãos e pecuária, estas cidades começam a tirar proveito da expansão da cana, que promete emprego e progresso. Há quase dois anos, a cana era considerada uma "praga" paulista. Resignados, os produtores de soja e milho percebem que é um caminho sem volta. Nestas cidades, os aluguéis inflaram, os restaurantes lotam e hotéis são construídos.
Bem diferente de 50 anos atrás, quando Jataí era uma pacata cidade do interior que servia de abrigo para vítimas de hanseníase e Mineiros vivia de superstições ainda da época dos quilombos. Ganharam destaque com o plantio de grãos e pecuária e atraíram os frigoríficos. E até há pouco tempo, a Perdigão reinava quase sozinha lá. Com um complexo industrial em Rio Verde, e investimentos para Jataí e Mineiros, hoje divide os holofotes com as usinas.
Ao mesmo tempo em que traz um ânimo novo para a economia desses municípios, a chegada das usinas expõe uma fragilidade típica das cidades pequenas: falta de mão-de-obra especializada. "Se aparecesse um engenheiro, contrataria agora", diz Vitor Gaiardo, dono da Mecol, empresa de instalação elétrica de Jataí. O mercado está aquecido não só para Mecol. Há vagas também para nível técnico, como operadores de máquina. Sobram emprego em Jataí e Mineiros. Mas só há vagas disponíveis e bons salários para cargos qualificados. A mão-de-obra braçal, usada em larga escala no campo, é ocupada por trabalhadores locais e migrantes.
Com projetos bilionários para a região, Brenco, Cosan e ETH estão aproveitando mão-de-obra local nos canaviais. Mas é insuficiente. Trabalhadores da região e de fora começaram a ser treinados nas matrizes. "Recrutamos e levamos para São Paulo", afirma Roberto Sanches, gerente-regional da Cosan, que se mudou com sua família de Piracicaba (SP) para Jataí. Os amigos Deiverson, Rafael e Edmar foram contratados como cortadores de cana pela Cosan, mas têm a opção de fazer curso para operar máquina. A Cosan está construindo uma usina em Jataí, que começa a operar em 2009, outra em Montevidiu, prevista em 2010, e também em Paraúna.
O prefeito de Jataí, Fernando Henrique Peres (PR), ri à-toa. Ele diz que, além da Cosan, outros três grupos vão erguer usinas na região: Sinimbu, de Alagoas, Elcana, do Rio, e grupo Cabrera, de São Paulo. Jataí terá um zoneamento para cana, mas não fará restrição, como ocorreu em Rio Verde, que limitou o plantio a 10% da área agricultável.
Em Mineiros, o cenário é o mesmo. "A cidade vive um momento de êxtase, com a economia se fortalecendo no campo", afirma a prefeita da cidade, Neiba Barcellos (PSDB). Das 960 vagas à disposição de dezembro ao início de abril, só cerca de 200 foram preenchidas. No dia 9 de abril, a Perdigão tinha disponíveis 30 vagas para cargos de nível médio.
Essas cidades crescem, atraem gente de fora, mas temem uma migração desenfreada, sobretudo de mão-de-obra barata. Jataí, com 82 mil habitantes, e Mineiros, com 45 mil, podem crescer 20% no médio prazo, calculam os prefeitos.
Como os novos projetos de expansão do setor não contemplam corte de cana manual, a figura do cortador de cana ganhou novos contornos por causa da mecanização. Os tradicionais cortadores são contratados como plantadores de cana. O trabalho não é menos leve. Eles têm carteira assinada para um trabalho temporário de cerca de seis meses. O piso é de cerca de R$ 450, mas o salário pode ser dobrado, de acordo com a produtividade. Um tradicional cortador de cana pode até tirar o triplo. Estudos mostram que o cortador de cana é um verdadeiro maratonista: 200 batimentos cardíacos por minuto durante o horário de trabalho.
Extremamente exaustivo, o trabalho nos canaviais virou alvo de fiscalização do Ministério Público, após nove mortes denunciadas no campo em 2005 em São Paulo. Em 2007, foram quatro mortes no Estado.
Nem a Brenco escapou desta patrulha. Com duas usinas em construção em Mineiros e outra em Perolândia, na mesma região, o grupo foi autuado. A Procuradoria do Trabalho alegou que 17 trabalhadores estavam em condições degradantes em Mineiros. A Brenco nega. O grupo contratou cerca de 700 trabalhadores para plantar cana para colocar em pé um grande complexo de etanol no Estado. José Taragano, diretor da Brenco, diz que boa parte da mão-de-obra poderá ser absorvida nas usinas que estão em construção. Esses trabalhadores estão em alojamento construído pela Brenco na região de Mineiros.
E na expectativa que os mesmos ventos de Jataí e Mineiros soprem na pequena Caçu, de 11 mil habitante, o prefeito da cidade, Gilmar Guimarães (PPS), que se apresenta como futuro governador de Goiás, diz que a cidade, ainda toda revestida por paralelepípedos, está preparada para se tornar um pólo econômico da região. Além das duas usinas da ETH, que também terá uma terceira unidade no Estado em Itarumã, Caçu abrigará cinco hidroelétricas. Como falta mão-de-obra na cidade, a ETH também busca trabalhadores na cidade vizinha, Cachoeira Alta, de 6 mil habitantes.
E para chegar nos canaviais recém-formados em Caçu, é preciso pedir licença para os bois. E eles o abrem o caminho: uns vão pra direita, outros pra esquerda, tudo sob a batuta dos boiadeiros. Assim, na mesma sintonia, o carro rasga a estrada por mais de 30 quilômetros. E lá de longe, onde tudo antes já foi árvores e pastos, abre-se uma longa trilha de cana. FONTE: Valor Econômico - 06/05/2008