Dia 15 de junho de 2012 morreram onze camponeses e seis policiais em uma megaoperação policial para desalojar algumas poucas famílias de agricultores que ocupavam um terreno da região de Marina Cué, Curuguaty. Este foi o início de um vertiginoso encadeamento de fatos que resultou na destituição do ex-presidente Fernando Lugo. Onze ocupantes sobreviventes se encontram privados de sua liberdade, sem nenhuma prova que os condene. Seu advogado, Vicente Morales, dialogou com A Rel e explicou os pormenores do caso. Justiça – ficção na terra sem lei -O senhor tem uma versão final do que aconteceu realmente em Curuguaty? -Não temos uma conclusão a este respeito, porque nenhum dos meus representados participou dos acontecimentos, o que a promotoria chama “zona zero”, isto é, onde começaram os disparos. Não sabem o que aconteceu simplesmente porque não estavam ali. O que sabemos é tudo o que consta do processo judicial, o qual, na nossa opinião, é unidirecional, já que toda a investigação – se assim a podemos chamar – está pré-estabelecida de maneira preconceituosa pelo Ministério Público. -O senhor poderia explicar isso melhor? -O fiscal Jalil Rachid elaborou uma novela sobre os fatos e busca gerar provas e indícios que fortaleçam apenas este relato. É um método indutivo e não dedutivo, portanto não tem nada a ver com o estabelecimento da verdade. O que se quer é condenar estes onze processados e não descobriro que aconteceu. Toda a investigação está viciada pelo voluntarismo do promotor. -O senhor pode nos dar alguns exemplos? -Claro. Foram encontrados aproximadamente 300 cartuchos de munição calibre 5.56 que correspondem ao das armas que a Polícia usa, mas o promotor negou que tal prova existisse, até que um canal de televisão exibiu um vídeo no qual se via um cidadão recolhendo esses cartuchos em uma bolsa de plástico e os entregava à Polícia. Isto é um claro ocultamento de evidência, o que prova que não estão investigando a morte dos camponeses, mas sim apenas a dos agentes policiais. Um helicóptero policial Robinson 44 equipado com uma câmara de vídeo sobrevoou toda a região, a partir de uma hora e meia antes do tiroteio. O próprio comandante do Grupo Especial de Operações (GEO), comissário Lovera, pôde ver do ar quem estava dentro do prédio e tomou a decisão de realizar o procedimento. O que se viu foram 35 campesinos tiritando de frio, famílias com seus filhos vivendo em barracas precárias, mal alimentadas, enfrentando condições de sobrevivência muito duras. Essa câmara filmou tudo, mas o vídeo não aparece, e deve ser porque, seguramente, nele são mostradas situações que a Promotoria não quer que sejam vistas. A Polícia informou oficialmente que nesse dia a câmara do helicóptero não funcionou. Vários dos corpos foram movidos para gerar uma suposta cena do crime. Em uma foto há uma bandoleira porta cartuchos de espingarda sobre o peito de um dos camponeses mortos, enquanto que em outra foto o mesmo corpo aparece sem a bandoleira, e assim poderíamos continuar, enumerando enormes “falhas” na cadeia de obtenção de provas que, só por isso, já seria motivo suficiente para anular todo o processo. Os protocolos processuais não são enfeites, mas garantias para os direitos das partes e, portanto, exige rigor em toda a cadeia de coleta e guarda de evidências e provas. São só camponeses mortos… -É difícil acreditar que haja uma acusação nessas condições… -Aqui falamos de centenas de irregularidades deste tipo e muito mais graves ainda. Denunciamos até possíveis execuções sumárias de camponeses nos acontecimentos de Curuguaty, torturas, abusos de todo tipo no mesmo lugar. Mas as nossas denúncias não são ouvidas adequadamente, já que o promotor desviou as nossas denúncias para uma Unidade de Direitos Humanos do Ministério Público que não tem capacidade técnica, nem é sua missão investigar este tipo de denúncias. Vários outros elementos desta natureza, evidências, provas potenciais, foram sistematicamente descartadas pelo promotor sem uma argumentação jurídica séria. Não há vontade de investigar, de se chegar à verdade. São inventadas provas e até testemunhas, são descartadas outras, e tudo para consolidar essa novela criada pelo promotor Rachid. -A Polícia afirma ter encontrado armas em mãos dos camponeses. Que tipo de armas? -Encontraram cinco espingardas velhas, com pouquíssima manutenção, das quais só uma teria sido disparada, apesar de não se saber quando foi disparada. São armas típicas de qualquer família de camponeses do Paraguai, usadas para caçar animais de pequeno porte, como forma de completar a alimentação familiar. Essas armas simplesmente não conseguem matar uma pessoa, a não ser que se dispare a um ou dois metros de distância. O Ministério Público também afirma que a Polícia entrou desarmada, mas há fotos e vídeos que mostram que havia 324 policiais com coletes a prova de bala, com pistolas, com cavalos, escopetas calibre 12, granadas, granadas de gás, todos interligados por rádio, com um helicóptero, caminhonetes, furgões, etc. A primeira versão oficial difundida foi que era apenas uma modesta comitiva de poucos policiais desarmados que foi até a região, mas com o tempo ficou demonstrado que era uma enorme operação minuciosamente planejada e executada. -O que a opinião pública pensa de tudo isto? -As pessoas não dão nenhuma credibilidade à versão do promotor; todo mundo já sabe o que aconteceu realmente em Curuguaty, mesmo sem haver uma investigação oficial. Há vídeos gravados no momento do tiroteio, onde se escutam rajadas de armas automáticas. Essas gravações estão na internet e são conhecidas por todos. Isto jamais foi investigado. Havia no momento uns 14 ou 15 fotógrafos de diversos órgãos e da própria Polícia, mas essas imagens nunca foram integradas ao expediente nem recebidas pela Promotoria. Não há falta de material para analisar, mas ausência de vontade de se investigar e estabelecer a verdade. Quando não se investiga e aparecem com o discurso de que se trata de camponeses treinados como terroristas pelas FARC – ou por marcianos, faltaria isso- simplesmente se pretende ocultar o que realmente aconteceu e qual foi o verdadeiro alvo, o objetivo desse massacre. Talvez tenha havido um momento de descontrole e, a partir daí, tudo ficou fora de controle. Os camponeses estavam assustados, vendo que estavamcercados de vários lados por policiais fortemente armados. Como começou tudo, isto é o que a Promotoria deveria investigar. A morte como ferramenta -É possível que se queira desmontar estes fatos, já que foram o principal argumento com o qual se pretendeu justificar o golpe parlamentar que destituiu o ex-presidente Fernando Lugo? -Eu não entro em considerações políticas; estou envolvido neste caso desde o ponto de vista técnico. Mas, qualquer paraguaio e paraguaia sabe que em nosso país existe um gravíssimo problema relacionado com a distribuição da terra. O governo anterior estava começando uma investigação sobre o assunto. Todos sabemos que existe duplicação de títulos, falsificações, adulterações, etc. O Registro da Propriedade é um porão sem acesso para o público, não está informatizado e, portanto, não está na internet e, para se ter acesso a ele, precisa-se de uma ordem judicial. É quase impossível, para alguém sem recursos, contratar um tabelião, redigir um pedido de informação para conhecer os limites e o tamanho de qualquer propriedade rural. Isto é uma caverna de mistérios. -Baseado em que os camponeses são mantidos presos? -O promotor acusou os detidos de tentativa de homicídio, mesmo sem terem nenhuma prova. A lei determina que os acusados deste delito devem ser recolhidos. Nós discordamos deste critério, porque vai contra o princípio básico de que toda pessoa é inocente até prova em contrário, e justamente neste caso não se demonstrou nenhuma responsabilidade com relação aos meus representados, e todos estão presos, seja em um cárcere ou em prisão domiciliar. -O processo judicial está em que etapa? -Neste momento foram fixadas Audiências Preliminares para os dias 15, 16 e 17 de julho. Não estamos otimistas para estas instâncias, apesar das centenas de irregularidades que denunciamos e as nulidades que apresentamos. Veremos como a doutora Yanina Ríos, a juíza que tem a seu cargo o caso, atuará. Desta Audiência tem que surgir, conforme determine a juíza, se alguém irá a julgamento e por que razões. Em um processo sério deveriam todos ser liberados porque não há provas para acusar ninguém. O promotor Rachid certamente tentará substituir a ausência de provas com depoimentos de 80 policiais apresentados como testemunhas. Mas a Polícia é uma instituição sujeita a uma cadeia hierárquica que impede qualquer agente de dar uma versão de acordo unicamente com a sua própria consciência. Podem ser ouvidos esses depoimentos, mas não podem, de nenhuma maneira, serem considerados como prova. Neste sentido, na Audiência passada, que foi suspensa, foram enumeradas as provas da Promotoria diante da presença de umas 100 pessoas, incluindo cerca de 40 jornalistas locais e estrangeiros. Foram mencionados “vários rolos de papel higiênico, duas hondas, cinco frascos de perfume, uma garrafa de refrigerante, uma lâmpada de campanha”, etc. Foi tão ridículo que não os presentes não conseguiram conter o riso diante do “non sense” de se apresentar estes camponeses como terroristas violentos, doutrinados e radicalizados. Uma cena totalmente surreal. -Quanto tempo pode durar esse processo todo? -Talvez mais de um ano. Eu poderia acelerar, pedindo um julgamento, mas seria expor os meus clientes em praça pública para o sacrifício, porque não estão criadas as condições para um justo processo, não há garantias. Acredito que enquanto isto, e infelizmente, eles permanecerão presos, mas o tempo nos vai permitir ganhar a opinião pública, demonstrar que não há provas contra estes camponeses e que o processo é uma montagem funcional com outros fins. Obviamente, há um cerco da mídia para omitir partes importantes das informações relacionadas com o caso, e tudo termina se politizando, partidarizando, e se perde de vista que se trata de uma questão de direitos, de um grupo de pessoas que reivindica um pedaço de terra para, sobre o qual, poder morar e trabalhar com a sua família. FONTE: Rel-UITA - Gerardo Iglesias