Nos debates atuais sobre problemas ambientais é muito comum que, ao abordar a situação emergencial das mudanças climáticas, seja apontado que entre as soluções para reverter ou desacelerar essa questão esteja o uso de energias renováveis em detrimento da energia gerada por combustíveis fósseis.
Mas nem sempre as discussões sobre as energias renováveis vão mais a fundo nos quesitos práticos sobre as instalações que geram a chamada “energia limpa”. Esse assunto foi ressaltado durante processo formativo em agricultura sustentável e resiliência às mudanças climáticas, promovido pela Secretaria do Meio Ambiente da CONTAG com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) em julho, com atenção especial ao envolvimento da agricultura familiar nesse processo. E resultou em uma Carta Aberta da CONTAG sobre o tema.
O Coletivo de Meio Ambiente, formado por dirigentes sindicais e assessorias da CONTAG e das Federações, observou que o número de instalações de energia eólica e fotovoltaicas em áreas com propriedades de agricultores e agricultoras vem crescendo em grande velocidade. E que isso tem gerado uma série de problemas de ordem social, ambiental e econômica para essas famílias. “Principalmente no Nordeste conseguimos observar o quanto as comunidades tem sido impactadas e prejudicas pela corrida desenfreada da energia limpa pelo olhar simplesmente econômico, sem considerar as questões sociais e ambientais”, explica a secretária de Meio Ambiente da CONTAG, Sandra Paula Bonetti.
Alguns dos problemas são: a inviabilização da produção nas áreas das instalações, a descaracterização das propriedades, o que dificulta o acesso das famílias a programas sociais, e o impacto negativo na saúde e qualidade de vida das pessoas próximas às máquinas de geração de energia.
A partir dessa discussão realizada pelo Coletivo de Meio Ambiente, e levando em consideração a importância da transição energética brasileira como medida ambiental relevante, a CONTAG reuniu nessa Carta uma série de propostas que visam a implantação mais responsável de usinas eólicas e fotovoltaicas. E convoca ainda os governos federal, estaduais e municipais, junto ao Poder Judiciário e Legislativo, a terem mais sensibilidade ao conjunto de problemas que a instalação dessas usinas sem o devido estudo e planejamento socioeconômico ambiental, podem causar.
“Queremos sim fazer a discussão sobre as mudanças climáticas e a transição energética”, argumenta a diretora Sandra Paula, “mas queremos uma transição justa, em que todos os povos, agricultores(as) ou não, afetados pelos empreendimentos, sejam ouvidos e contemplados, fazendo parte do processo. E não da maneira que têm sido feito os processos atualmente, cada vez mais excludentes dos sujeitos e seus territórios”.
Leia a íntegra da Carta abaixo:
CARTA ABERTA DA CONTAG SOBRE OS IMPACTOS DOS EMPREENDIMENTOS DE GERAÇÃO DE ENERGIA RENOVÁVEL NO BRASIL, COM ENFOQUE ESPECIAL NO NORDESTE
O Coletivo Nacional de Meio Ambiente da CONTAG, composto pelos(as) dirigentes sindicais e assessorias da CONTAG e das Federações filiadas, reuniu-se no período de 17 a 21 de julho de 2023 para discutir sobre mudanças climáticas e agricultura familiar.
No dia 17 o debate foi focado no contexto dos emergentes conflitos causados pela implantação de parques eólicos e fotovoltaicos no Brasil, com enfoque especial na região Nordeste do país. Os relatos dos(as) agricultores(as) familiares trazidos pelas federações são contundentes e exigem uma resposta imediata.
Nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado uma crescente demanda por energia, impulsionada pelas políticas de descarbonização. Isso tem levado à implementação de ambiciosos projetos de geração de energia, com ênfase em fontes renováveis, como a eólica e a fotovoltaica. No entanto, a implementação desses projetos, partindo de um modelo centralizado de geração de energia para a transição energética, tem resultado em violações dos direitos das comunidades mais vulneráveis. Empresas têm celebrado contratos de cessão de uso da terra com agricultores e agricultoras familiares que, frequentemente, não possuem o conhecimento adequado para compreender a complexidade do que estão assinando e as consequências futuras.
Embora tais contratos sejam legais do ponto de vista jurídico, na prática, os agricultores e agricultoras familiares têm denunciado que suas propriedades se tornam economicamente inviáveis. Essa nova lógica produtiva tem alterado o modo de vida e a produção, dificultando também, o acesso às políticas públicas por desenquadramento, em especial aos programas sociais e à aposentadoria rural, comprometendo a geração atual e a sucessão familiar pela inviabilidade da propriedade para as atividades produtivas. Além disso, existem fortes evidências de graves problemas relacionados à saúde das famílias afetadas por esses empreendimentos, assim como impactos ambientais desconsiderados.
Portanto, é imprescindível que os governos federal, estaduais e municipais, juntamente como Poder Judiciário e Legislativo, demonstrem plena compreensão, sensibilidade social e comprometimento, não apenas com a promoção de produção de energia renovável e a necessidade de transição energética, mas também com a proteção dos direitos das populações afetadas e do meio ambiente.
A CONTAG compreende a necessidade de uma transição energética que reduza o uso de combustíveis fósseis na matriz energética brasileira, promovendo uma expansão verdadeiramente sustentável das fontes renováveis. Entendemos que a continuidade do aumento das fontes fósseis é insustentável. Mas ao mesmo tempo, é importante destacar que uma expansão acelerada e descontrolada de grandes empreendimentos renováveis, como os eólicos e fotovoltaicos, especialmente nos estados do Nordeste, tem reproduzido um modelo exploratório que viola os direitos humanos e os direitos da natureza. Nossa visão é buscar equilíbrio, garantindo o desenvolvimento sustentável e o respeito ao meio ambiente e às comunidades envolvidas.
A CONTAG, como legítima representante dos agricultores e agricultoras familiares brasileiros, manifesta profunda preocupação com a complexidade desse tema e defende uma abordagem mais cuidadosa em relação à implantação de projetos de geração de energia que possam impactar as comunidades tradicionais e os agricultores e agricultoras familiares. É inaceitável que os seus direitos sejam prejudicados em nome da descarbonização e das exigências do mercado.
Com grande urgência, a CONTAG apresenta propostas essenciais para a implantação responsável de usinas eólicas e fotovoltaicas, com o objetivo primordial de preservar esse público na condição de agricultores e agricultoras familiares, assegurando assim sua sustentabilidade e bem-estar, inclusive na qualidade de segurados e seguradas especiais da previdência social:
1. Promover a democratização do debate acerca do regime jurídico que regula os contratos de cessão de uso da terra, visando garantir que as famílias agricultoras tenham um conhecimento abrangente de seu conteúdo, bem como de suas consequências em termos de direitos e obrigações.
2. Garantir a participação de entidades representativas da categoria e das comunidades afetadas nas negociações para a implantação de empreendimentos energéticos, possibilitando a inclusão de cláusulas que as protejam.
3. Implementar mutirões jurídicos ou de conciliação extrajudicial, com o propósito de identificar e revisar minuciosamente eventuais cláusulas abusivas nos contratos já em execução.
4. Aprimorar e revisar novos contratos para garantir a transparência das informações e proteger plenamente os direitos das populações e territórios afetados.
5. Assegurar que a implementação de projetos de energia renovável, tanto eólica quanto fotovoltaica, esteja em total conformidade com a legislação ambiental vigente.
6. Reenquadrar parques aprovados com licença simplificada ou já instalados, de forma a garantir sua total conformidade com as exigências legais, especialmente em relação às políticas ambientais e territoriais, com o objetivo de assegurar a devida compensação socioambiental.
7. Promover o acesso democrático às informações dos empreendimentos por meio de consultas livres, prévias e informadas às comunidades, garantindo a transparência e participação ativa, conforme estabelecido pela Convenção 169 da OIT.
8. Estabelecer grupos de discussão e colaboração de órgãos ambientais, a sociedade civil e pesquisadores(as), com o objetivo de aprimorar a legislação e aprofundar os estudos pertinentes, contando com o apoio financeiro do Governo Federal.
9. Estabelecer um amplo programa federal que incentive a adoção da geração distribuída de energia em pequena e microescala, promovendo a democratização da geração de eletricidade através de financiamento acessível e simplificado.
10. Enfrentar de maneira integral os impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais resultantes da instalação de empreendimentos de energia renovável no Brasil, especialmente no Nordeste, região que assume a liderança na expansão das energias limpas em nosso País.
11. Assegurar a reparação integral dos direitos violados das populações afetadas que habitam em áreas de influência direta e indireta dos empreendimentos energéticos, independentemente de terem ou não assinado contrato para a implantação dos projetos.
12. Garantir que as áreas de influência direta e indireta dos empreendimentos energéticos não se sobreponham às regiões que abrigam espécies ameaçadas e/ou endêmicas da caatinga e áreas de preservação permanente.
13. Garantir que ao encerrarem suas atividades ou substituírem as torres dos aero geradores ou placas solares, as empresas assumam a responsabilidade integral de efetuar a retirada, destinação adequada e o reaproveitamento dos materiais presentes nos parques.
14. Aperfeiçoar o modelo de implantação dos parques fotovoltaicos, promovendo a produção de energia consorciada com outras atividades produtivas na mesma área, reduzindo o uso de herbicidas e evitando a raspagem do solo, a fim de preservar a sua vitalidade
15. Estabelecer critérios mais rigorosos no licenciamento de grandes empreendimentos, em áreas reconhecidas como prioritárias para a conservação ambiental e que são ocupadas por comunidades tradicionais e de agricultura familiar garantindo a participação da sociedade ao longo do processo.
A CONTAG, como legítima representante da agricultura familiar no Brasil, tem o dever de representar, proteger e defender os direitos dos(as) agricultores e agricultoras familiares. Desse modo, reivindicamos ações imediatas dos três poderes, nas esferas municipal, estadual e federal no sentido de reparar os passivos empreendimentos já instalados de energia renovável assim como garantir que os novos empreendimentos não cometam os mesmos erros.
Brasília, 20 de julho de 2023.
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