A agricultura de subsistência que abastecia o entorno e lhe dava suporte econômico, com a grande propriedade direcionada para o cultivo do café e a pecuária extensiva, foi uma das principais características da vida rural paulista durante décadas. Essa população ativa deu ao Estado uma harmonia social, onde - descontados os atritos de praxe nas relações entre pessoas e o descaso do Estado com o campo - havia pobreza, mas não miséria.
O equilíbrio entre propriedades de diferentes atividades e tamanhos podem explicar a quase inexistência de graves conflitos fundiários no Estado, que se concentram mais no Pontal do Paranapanema. Mesmo em regiões, como a Noroeste, onde existem vários assentamentos, os assentados se integraram às comunidades locais e já não são vistos como perigosos agitadores ou usurpadores da propriedade alheia.
O desmonte desse quadro de equilíbrio com a monocultura canavieira que provocou o êxodo rural, não destruiu as boas relações no campo. Por isso, é com razão que tenham causado surpresa os conflitos ocorridos no final do ano no assentamento Bela Vista em Araraquara, nordeste paulista. Primeiro, pelo desconhecimento de que a apenas 270 quilômetros da capital existem assentados e também por se tratar de um conflito entre os beneficiados pela distribuição de lotes.
Os atuais ocupantes foram atacados por um grupo de ex-assentados, acertadamente destituídos de suas terras por não estarem seguindo normas que vinculam os lotes à produção familiar. A infração cometida foi arrendarem para o cultivo de cana-de-açúcar a área recebida do Incra, quando uma das exigências é que produzam itens da agricultura familiar. O episódio, minimizado nos noticiários, até em função da euforia gerada pelas confraternizações de final de ano, revela um fato mais grave que o embate físico entre os destituídos e os novos ocupantes das terras, que é o cultivo de cana-de-açúcar em assentamentos.
Assim como nos incontáveis episódios de corrupção envolvendo autoridades em geral em que se expõe a figura do corrompido, mas se preserva o corruptor, nesse caso o Incra e as entidades representativas do setor sucroalcooleiro devem uma explicação sobre os destinos da cana ali cultivada que, certamente, não era utilizada para a venda de caldo em beira de estrada ou na produção de rapadura.
É de supor que as empresas do setor sucroalcooleiro tenham conhecimento da legislação e das finalidades dos assentamentos rurais. Contando sempre com o beneplácito das instituições oficiais de crédito, rápidas na abertura de seus cofres para os grandes projetos - especialmente aqueles com finalidades energéticas -, mas muito lentas quando se trata de projetos da pequena propriedade, as grandes empresas sucroalcooleiras, a julgar pelo exemplo de Araraquara, avançam, agora, sobre assentamentos. A expansão desenfreada da monocultura canavieira sem o devido zoneamento que aniquilou a pequena propriedade em quase todo o interior paulista, agora ameaça os assentados. Era só o que faltava. (GABRIEL DE SALLES - Editor. E-mail: gsalles@gazetamercantil.com.br) FONTE: Gazeta Mercantil ? SP