A visita da chanceler alemã, Angela Merkel, confirmou tanto o interesse da União Européia (UE) no etanol como as significativas dificuldades para operacionalizar o comércio do produto com os europeus. No discurso durante a visita a uma montadora automobilística no ABC paulista, a chanceler afirmou que os passos trilhados na tecnologia do flex fuel e dos biocombustíveis no Brasil "poderão ser seguidos também na Alemanha". Porém, Angela Merkel também cobrou, depois de garantir ajuda aos combustíveis renováveis, medidas de proteção ao meio ambiente na produção da cana-de-açúcar, além de nenhuma interferência na produção de alimentos. O presidente Lula reagiu de imediato, assegurando que não aceitará que a questão da produção de etanol seja tratada com "meias verdades", movidas pelo que chamou de "interesses meramente comerciais". Para garantir a total transparência Lula anunciou que pretende discutir preservação de biodiversidade e biocombustíveis em uma conferência internacional a ser realizada em Brasília em novembro. A realidade energética e ambiental da UE e dos Estados Unidos não pode, de fato, prescindir da produção de etanol. Na semana passada, reunião da Associação Internacional de Energia (AIE), em Genebra, estimou que nas próximas três décadas 25% dos carros no mundo serão movidos a etanol. Na perspectiva da agência, se as pressões contrárias ao etanol saírem vitoriosas, hoje o mundo já teria que produzir 1 milhão a mais de barris de petróleo diariamente apenas para suprir o espaço deixado pelo combustível verde só nos EUA e na Europa. Apesar desse fato, há forte resistência para a implantação do acordo entre os 27 países da UE para que o etanol cubra 10% do consumo europeu de combustíveis em 2020.
Na semana passada, os técnicos da UE notificaram o Brasil que será preciso um acordo bilateral sobre etanol, com cláusulas muito claras sobre proteção de direitos sociais na produção de álcool, além de estritos controles na questão ambiental. A rigor, a meta de inclusão de 10% de etanol no consumo europeu enfrenta um poderoso lobby contrário em vários países europeus. Aliás, a chanceler Angela Merkel foi muito cautelosa e pediu transparência do Brasil, mencionando a resistência que a questão provoca na Europa. Há duas alternativas: estabelecer metas possíveis, por país, até atingir os 10% previstos de etanol, para ajudar na proteção do meio ambiente, ou reduzir a meta de 10%, negociando politicamente a resistência dos lobbies contrários ao etanol. Atenta a este contexto, Merkel reconheceu que a área produtora de cana em São Paulo fica "bem longe da Amazônia", mas aproveitou a ocasião para pedir ações concretas para isolar a floresta do cultivo de soja e da prática da pecuária.
Em setembro do ano passado, o Parlamento Europeu aprovou o Relatório Thonsen, elaborado pela deputada Britta Thonsen, propondo a instalação de um formal sistema de certificação social e ambiental, impondo mecanismo de verificação e monitoramento periódico dos países produtores de etanol. A medida atingiria diretamente o Brasil que já é o maior fornecedor do produto para a UE. Esse documento foi uma resposta ao parecer técnico da Comissão Européia, que fixou em 10% a parcela do produto no consumo europeu ao final da próxima década. A decisão dos deputados não tem poder impositivo sobre a Comissão, mas possui forte pressão política. A Comissão já previra uma certificação ambiental para a produção do etanol, mas delegada aos países produtores. O relatório aprovado foi bem além dessa determinação técnica e chega a prever uma avaliação se o combustível comprado "não gerou impacto negativo sobre a produção de alimentos na área de cultivo".
Há, obviamente, grande desinformação quanto a questões sociais e ambientais envolvidas na produção de álcool no Brasil. O eventual uso de terras da floresta amazônica para cultivo de cana enfrenta obstáculo técnico intransponível: o volume de chuvas na região não permite o amadurecimento da cana. Quanto à questão social envolvida no etanol, motivo até de denúncias de religiosos para a chanceler, não resiste aos relatórios da Organização Internacional do Trabalho, mostrando que o Brasil é "exemplo na luta contra o trabalho forçado", fato que inclui a fixação de metas de produção inumanas.
A Alemanha tem um papel preponderante nas decisões da Comissão Européia. A chanceler Merkel reconheceu que o Brasil tem "vastas áreas" para o plantio de cana, insistindo em que essa não é a situação de outros países latino-americanos. A adaptação da frota européia para o modelo flex fuel sequer começou, mas será inevitável, apesar do "atraso" na adição dos biocombustíveis aos combustíveis fósseis, como reconheceu a chanceler. No entanto, a necessidade de proteção ambiental, além dos riscos inerentes ao petróleo, fará do etanol um fato consumado no contexto europeu. Será uma questão de tempo e, ao que parece, Angela Merkel sabe disso.
FONTE: Gazeta Mercantil - 19/05/2008