Notícias recentes parecem corroborar cada vez mais a percepção de que, em vez de constituir um instrumento de construção de unidades produtivas rurais sustentáveis, a exigência legal do licenciamento ambiental dos projetos de assentamento rural do Incra tem funcionado frequentemente como mecanismo de criminalização da autarquia e das famílias assentadas e operado como estratégia indireta de desconstrução do (ainda pouco e insuficiente) esforço para minorar a pobreza rural e a concentração fundiária. A crítica contida nessa percepção não põe em dúvida a necessidade de que todos os produtores, comprometendo-se com a preservação ambiental, busquem formas adequadas de manejo e uso dos recursos naturais, em nome do bem comum e do futuro com garantia de preservação da vida com qualidade. O problema está em que essa exigência, que se impõe igualmente a todos, nem sempre se aplica igualmente a todos. As seguidas judicializações da questão do licenciamento ambiental dos assentamentos rurais não se restringem unicamente à punição dos mais carentes e indefensáveis, mas inviabilizam, nos seus efeitos, a própria continuidade da política de reforma agrária. O caso específico do PDS – Projetos de Desenvolvimento Sustentável, criados em São Paulo em anos recentes, ilustra um paradoxo: atribui-se aos assentados, cujas práticas contribuem para recuperação produtiva de uma área previamente degradada, o encargo de arcar com o passivo ambiental legado pelos antigos proprietários, sem que coloque em pauta a responsabilidade destes últimos, que se locupletaram com o uso predatório da terra, pelos danos causados ao meio ambiente. O exemplo dos hortos paulistas é paradigmático: a terra foi esgotada por explorações desordenadas de eucalipto, realizadas sem qualquer preocupação com regras de utilização sustentável dos recursos. Os ocupantes anteriores impuseram a monocultura em prejuízo à vegetação da região, comercializaram a madeira e deixaram a área sem a obrigação de recuperá-la. Transferiram essa responsabilidade ao Incra e às famílias assentadas, que encontraram a terra já degradada. No caso em questão estranha-se que o ministério público não tenha aberto nenhuma investigação sobre o nível da violência e a crueldade praticada pela polícia militar à mando da prefeitura local durante o processo de reintegração de posse. Foram tiros de bala de borracha para todos os lados, chegando a arrancar parte da orelha de lideranças que ali presentes defendiam as famílias. Em seguida passando com trator sobre os barracos destruindo barracos, móveis, produção. Situação fartamente divulgada à época. Área pública federal na qual a prefeitura manifestava seu interesse de entregar ao capital privado local. Inclusive, desde 2008, o INCRA solicitou o documento da prefeitura para fazer o licenciamento ambiental. Contudo, ignorando a manifestação do Incra, o pedido de licenciamento está parado na Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Em tais circunstâncias, recomendamos ao governo federal que declare a incompetência do governo do estado em licenciar assentamentos de reforma agrária e que o mesmo seja elaborado pelo IBAMA a exemplo do que ocorre com obras de interesse do governo federal. O que poderia ser uma solução adequada – a destinação dessas áreas aos sem terra no âmbito do programam de reforma agrária – acaba por se revelar um problema. O licenciamento ambiental é necessário, mas, quando o processo de sua liberação consome, não raro, mais de um ano em morosos trâmites administrativos, como ocorreu em São Paulo, outras questões se impõem por sua urgência. Não se pode prolongar indefinidamente a permanência das famílias nos acampamentos, onde, submetidas às duras condições da luta pela terra e alojadas em instalações precárias, elas esperam às vezes por anos para ter acesso a um lote. Da mesma forma, criado o assentamento, não se pode aguardar indefinidamente a concessão do licenciamento ambiental para dar início às obras de infraestrutura básica – abertura de vias de acesso, ligação de rede elétrica, construção de sistemas de abastecimento de água etc. –, necessárias para assegurar níveis satisfatórios de qualidade de vida às famílias assentadas. Enquanto o processo de licenciamento caminha lentamente pelas instâncias burocráticas estaduais, as famílias assentadas ficam sem luz, sem água, sem acesso aos recursos que permitiriam sua estruturação produtiva inicial. Dar início a essas providências, mais que simplesmente cumprir uma etapa no difícil processo de instalação de um assentamento – do qual o licenciamento constitui uma parte –, significa garantir às famílias assentadas condições dignas de subsistência, cuja prestação é dever do Estado. As necessidades da sobrevivência nem sempre se acomodam aos prazos da administração. Chama a atenção, especificamente no caso de São Paulo, o contraste entre as denúncias que apontam para a inobservância das exigências ambientais por parte da anterior Superintendência Regional do Incra (SR-8) e, no mesmo período, o expressivo índice de práticas preservacionistas em vigor nos assentamentos do estado e constatados pela pesquisa Qualidade de vida, produção e renda nos assentamentos de reforma agrária, divulgada pelo Incra nacional em abril de 2011. Os índices de adesão dos assentados em São Paulo à utilização de métodos de cultivo pró-ambiente mostram-se superiores aos mesmos indicadores para o conjunto total dos assentados: 22,69% dos assentados em São Paulo adotam adubação verde, contra 9,07% dos assentados em geral; 63,73% dos assentados em São Paulo empregam curvas de nível, contra 5,62% dos assentados em geral; 38,07% dos assentados em São Paulo praticam rotação de culturas, contra 21,15% dos assentados em geral; 54,09% dos assentados em São Paulo aplicam adubação orgânica, contra 26,96% dos assentados em geral; 25,74% dos assentados em São Paulo fazem controle alternativo de pragas e doenças, contra 8,13% dos assentados em geral. Esse desempenho é tanto mais relevante para a defesa da atuação da Superintendência anterior na medida em que reflete a orientação da política de assistência técnica e extensão rural por ela implementada. Outra avaliação da política de assentamentos no estado, sob a gestão anterior, foi realizada por uma equipe do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA: os resultados desse estudo de campo, apresentados em três seminários no estado, acrescentam várias evidências positivas em favor dessa política, e a reforçam a expectativa de que o Relatório Final, a ser publicado por aquela instituição, possa oferecer um conjunto analítico mais completo da situação dos assentamentos no estado. Por fim, a ABRA enfatiza que o respeito às normas ambientais é requisito integrante do princípio da função social da terra, em nome do qual a política de reforma agrária se realiza, e, dessa forma, o licenciamento ambiental é um instrumento fundamental para assegurar que o projeto de assentamento seja instalado em conformidade com as regras de preservação do meio ambiente. No entanto, os danos ambientais presentes em uma área desapropriada têm origem na situação anterior do imóvel, e não podem representar um impeditivo ou um pretexto protelatório que prejudique o atendimento da demanda social de caráter emergencial representada pelas famílias acampadas e assentadas do país.
Brasília, 29 de Novembro de 2012 A Direção FONTE: ABRA - Associação Brasileira de Reforma Agrária