Ante tal realidade, pergunta-se: o que devem fazer esses milhões de pessoas? Ou: o que o leitor faria se estivesse na situação dessas famílias?
A OCUPAÇÃO de terrenos públicos e privados por famílias sem teto é indubitavelmente uma desordem. Ninguém pode gostar disso. Mas, certamente, ninguém gosta menos do que as famílias obrigadas a esse expediente para escapar do barraco à beira de um fétido esgoto, da cama de papelão em baixo do viaduto, da promiscuidade perigosa dos cortiços. Há 620 mil pessoas nessas condições só na Grande São Paulo.
A Constituição de 1988 outorgou aos municípios brasileiros faculdades suficientes para uma intervenção eficaz no problema da falta de moradias.
Admitindo implicitamente que a causa principal é a especulação imobiliária, o texto constitucional outorgou quatro faculdades específicas aos municípios a fim de aparelhá-los para intervir no mercado imobiliário urbano: facultou o parcelamento compulsório dos terrenos ociosos com pagamento das indenizações mediante títulos da dívida pública resgatáveis em dez anos; permitiu a construção compulsória em terreno particular; instituiu o usucapião de cinco anos em favor da família que ocupar área urbana de até 250 metros2; e estabeleceu a progressividade do IPTU. Obviamente essas regras seriam desnecessárias se a especulação não campeasse solta.
Mas elas não adiantaram grande coisa. Prefeitos e vereadores não têm coragem de aplicá-la; a legislação ordinária regulamentadora do preceito contribuiu mais para dificultar sua aplicação do que para torná-la expedita; e o Judiciário, sem dizer, se encarregou de revogá-la, caso a caso, sempre que sua aplicação ferisse o interesse do capital imobiliário.
Os governos preferem jogar dinheiro na construção de casas, medida que sabem não resolver o problema. Mas, a crer nos multicoloridos "folders", sempre repletos de fotografias dos prédios construídos e de beneficiários agradecidos e benfeitores generosos, o problema já está resolvido.
A realidade, porém, é muito outra: 2,3 milhões de famílias moram em casas inadequadas, o que inclui habitações em situação de risco, sem instalações sanitárias, sem nenhum tipo de infra-estrutura urbana. Somando todos os programas de moradia e ajustando o ritmo da construção ao ritmo do crescimento das cidades, o problema não será resolvido em menos de 20 anos. Enquanto isso, estatísticas oficiais registram 6,7 milhões de domicílios vazios no Brasil -clara evidência de que a solução não está apenas nos programas de construção de casas populares.
Sempre que a falta de moradia ocasiona alguma catástrofe -o que, de resto, ocorre com muita freqüência-, a mídia faz piedosas reportagens sobre o assunto, evitando cuidadosamente abordar o cerne do problema: a especulação imobiliária e a regressividade da tributação da terra urbana.
Ante essa realidade, pergunta-se: o que devem fazer esses milhões de pessoas? Ou: o que o leitor faria se estivesse na situação dessas famílias?
A maioria dos mal-alojados prefere esperar que um governante de "bom coração" ou algum político interessado no seu voto resolva o problema.
Porém, há, no meio dessa massa, uma pequena parcela que, conscientizada por grupos políticos sérios, decidiu agir: organizou-se em um movimento e passou a fazer ocupações de terrenos vazios. Essas entidades estão fazendo manifestações de protesto em nove Estados do país.
A cidadania precisa apoiá-las, quando mais não seja, defendendo a legitimidade desses protestos em seus círculos de convivência. Só isso ajudaria muito, pois a opinião pública favorável inibe a repressão.
A ocupação de terras é forma legítima de afirmação de direitos numa sociedade que não estabelece mecanismos civilizados para que as pessoas possam ver tais direitos assegurados e na qual nem o governo nem a sociedade se importam com a sorte dos sem-teto.
É porque tomaram consciência disso que esses sem-teto se sujeitam às bombas de efeito moral, ao gás lacrimogêneo, às balas de borracha, à vida (sem água e sem instalações sanitárias) numa barraca de plástico.
Obviamente, entre fazer alguma coisa para ajudar a resolver o problema e não fazer nada, a atitude mais cômoda é inegavelmente a segunda, pois a polícia acabará retirando os ocupantes e, portanto, a "ordem" voltará a prevalecer.
Há nessa atitude, contudo, um terrível equívoco: ao "tirar" os ocupantes, a polícia não faz senão gerar mais ocupantes. E vai continuar "tirando" e "gerando" até o dia em que não conseguir mais "tirar" ninguém.
Aí...
PLINIO DE ARRUDA SAMPAIO , 77, advogado, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do "Correio da Cidadania". Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação). FONTE: Folha de São Paulo ? SP